Hanói

Texto publicado hoje n’O Popular.

Hanoi

Hanói é um lugar para morrer. Morre-se em todo e qualquer lugar, mas David, trinta e poucos anos, doente terminal e protagonista do romance Hanói (Alfaguara), de Adriana Lisboa, escolhe a cidade vietnamita. É uma vontade dele, viajar, passar ali seus últimos dias. Escolha tão gratuita e casual como foi gratuita e casual a ocorrência nele da doença.

Quando li sobre o livro, pensei em minha novela Aneurisma. Nela, o protagonista, também jovem, descobre-se doente e escolhe não se tratar. Há uma clara opção pela imobilidade e, no limite, pela morte. David, pelo contrário, nega a imobilidade e escolhe se movimentar até que a morte o alcance. Ou seja, há um abismo conceitual, estético e existencial entre as narrativas. Ademais, o romance de Adriana é irretocável.

E Hanói é mais sobre deslocamento que sobre doença ou morte. A história se passa nos EUA e é povoada por imigrantes e filhos e netos de imigrantes. David é filho de um brasileiro e uma mexicana. Alex, filha e neta de vietnamitas. Há o deslocamento para o passado e os lugares de onde eles ou os pais vieram. Há a impossibilidade de deslocamento para o futuro, ao menos no que concerne a David. Os outros pensam na vida. David pensa em Hanói.

A doença é a inscrição da temporalidade no corpo. Há o tempo, claro, ele próprio uma inscrição, a inscrição primeira, mas a doença acelera tudo, escreve reto por linhas retas. “(…) Quando te dizem que é o último gole, David pensou, você para, aguça os sentidos e sente o gosto da bebida pela primeira vez.”

Há uma simplicidade no morrer que a simplicidade da prosa de Adriana corteja com leveza. O tom está de acordo com David, alguém que desde cedo escolheu não se imiscuir no acotovelamento cotidiano. Ele não é ambicioso ou competitivo; está na contramão, fora da curva, feliz com o “pouco” que tem.

Claro que algo assim não é fácil: Lisa, a namorada, abandona-o exatamente por isso. Atira o trompete de David pela janela. Ele, um músico de fim de semana, amante do jazz, compreende que ela queira ir embora, e também compreende que é melhor assim. Ele pensa na vida que o pai levava: “(…) E o produto da fábrica era a vida daquele homem, sua vida pesada e arrastada de uma infelicidade cem por cento normal”.

A música é muito importante. Há uma playlist que se desenrola no decorrer do livro. Por exemplo, é lindíssimo quando o jazz do “totalmente ferrado por dentro” Ornette Coleman vem calçar e dar sentido à narrativa. Em um mundo cada vez “menos nítido”, os sons sustentam o que é possível sustentar no processo de esboroamento. Sustentam, preenchem.

Hanói é o lugar para morrer, mas, estranhamente, torna-se depois (e também) o lugar para viver. Não é que David se salve. Não é que ninguém vá se salvar. Mas a viagem no capítulo final simboliza uma ideia de continuidade que transcende os nossos corpos-que-apodrecem. É outra coisa. É a memória do outro no outro, e a memória deste outro no outro-outro, e assim sucessivamente. Feito um improviso no palco, uns desenvolvendo os acordes dos companheiros.

Um trecho: “E agora já não havia aquele tatear experimental, aquela cerimônia inicial toda, na proximidade física: eles tinham fincado suas bandeirinhas no solo lunar, eram astronautas profissionais. A outra pessoa fica tão longe e tão perto, dependendo apenas dos acordes que se firmam. Você pode esticar o dedo e tocar a lua”.

Hanói é um recorte desse palco, o soberbo desenrolar de alguns desses acordes. Mesmo que seja impossível estar no lugar do outro, “calçar os seus sapatos”, todos precisamos de companhia em Hanói, afinal.