Resenha publicada hoje no Estadão.
Desde 2011, o paulistano Luis S. Krausz vem publicando um romance a cada dois anos: Desterro, Deserto, Bazar Paraná, vencedor do Prêmio Benvirá, e, agora, Outro Lugar, agraciado com o Prêmio Cepe Nacional de Literatura. São narrativas que trafegam no limiar entre a memória e a ficção e que, ao fazer isso, ensejam reflexões na medida ou a partir do momento em que seu narrador se coloca em movimento, em viagem. Vistas em conjunto, formam uma “longa história de diásporas dentro de diásporas” (como é dito a certa altura de Deserto). É como um desdobramento natural e coerente desse projeto literário que devemos encarar o excelente Outro Lugar.
Ao resenhar Bazar Paraná para este caderno, há dois anos, escrevi algo que talvez nos sirva agora: Krausz investe em um mapeamento afetivo-familiar do desterro. Em hebraico, há um termo que se refere ao exílio ou à dispersão dos judeus pelo mundo, “longe de sua terra”: galut. Em meados da década de 1980, o narrador de Outro Lugar deixa o Brasil e parte para Nova York. Independentemente de seus motivos imediatos (estudar na Columbia University), ao fazer isso ele dá prosseguimento àquele processo diaspórico no qual já se encontrava inserido de antemão – embora paulistano, descende (como o próprio Krausz) de judeus do leste que se viram obrigados a emigrar em função do antissemitismo e das agressões, para não falar da escalada nazista que, como sabemos, resultou na aniquilação de milhões de pessoas.
Na prosa do autor, o efeito mais visível da condição de desterrado está na disposição para discorrer sobre o outro, isto é, aqueles em quem esbarra em suas andanças: o amigo na sala de embarque do Aeroporto do Galeão, os colegas de trabalho, seja no Brasil, seja fora, parentes próximos e distantes etc. A narrativa é atravessada por fios e mais fios de lembranças, sejam do narrador, sejam de seus familiares ou conhecidos, criando uma tapeçaria que se espalha no tempo e no espaço, de São Paulo a Nova York, de Beirute a Düsseldorf, de Berlim a Petrópolis. O leitor se depara com “línguas estranhas e terras estranhas, a naturalidade perdida para sempre, a marca do foreigner estampada na testa”. Com “a ilusão de, por pertencer a mais de um lugar, pertencer ao mundo inteiro” caminhando para se tornar o “grande sonho esfacelado do cosmopolitismo”, o que resta (ao autor, ao narrador, aos personagens e, por fim, ao leitor) são esses recortes mínimos de indivíduos lançados daqui para lá e não raro engolidos pelo próprio avançar do tempo.
No entanto, mais do que enfileirar histórias que testemunha ou sobre as quais ouve ou lê, o narrador trata de organizá-las de forma a ilustrar da melhor maneira possível o tema em questão. Por exemplo: ao remeter a uma viagem do pai a Düsseldorf, onde sofre um ataque cardíaco não diagnosticado, refere-se à sensação causada pelo retorno de um judeu à Alemanha, apenas dezesseis anos após o fim da Segunda Guerra. Similarmente, o destino de um velho fotógrafo, outrora conhecido na Velha Europa, é morrer anonimamente em um asilo em Petrópolis, deixando para a posteridade registros de um mundo que desapareceu, transformado em ruínas e entulhos. Ficam os contornos da diáspora, obtidos por meio de uma escrita que recupera, de forma episódica, mas fluida e calorosa, os traços de um povo que se recusa a sucumbir “à perfeição consumada do oblívio”.
Foto: Daniel Teixeira/ESTADÃO