Resenha publicada em 06.12.2014 no Estadão.
O romance Skagboys (Rocco), do escocês Irvine Welsh, é um prequel, ou seja, um retorno aos personagens de Trainspotting e Pornô, mas situando a narrativa em um período anterior ao dos outros livros que, agora, formam com ele uma trilogia. Assim, retornamos à prosa inventiva, escatológica e coloquial do autor, com frequência calcada no dialeto do Leith, bairro de Edimburgo, e outra vez traduzida com apuro por Daniel Galera e Daniel Pellizzari. Eles circulam bem pelos diferentes narradores e registros que constituem o romance, transmitindo com eficácia o humor e o horror que colorem as suas quase 600 páginas.
Skag é uma gíria para heroína, a meia-noite na qual os então jovens Renton, Sick Boy e Spud, entre vários outros, adentram na primeira metade da década de 1980. Muito embora o thatcherismo esteja a pleno vapor, destroçando a classe trabalhadora britânica, nem todos eles recorrem à heroína por falta de perspectivas. Renton, por exemplo, é um universitário promissor, em um dado momento comprometido com uma bela garota e que afirma “que é muito bom ser quem ele é”, um “jovem inteligente de classe trabalhadora que mora nessas ilhas maravilhosas”. Ao optar pela heroína, abandonando a universidade e a namorada (e uma das razões desta decisão será dolorosamente esclarecida apenas na parte final), mergulha em uma espiral autodestrutiva jamais enfocada de forma melodramática ou moralista.
Há uma alternância de narradores, dentre os quais citamos Sick Boy (que, para começo de conversa, não hesita em viciar e prostituir a filha menor de idade da vizinha), Spud (o mais ingênuo, afetuoso e tragicômico; sua noite com uma cantora holandesa avançada em anos é engraçadíssima), o psicopata Begbie (viciado não em heroína, mas em trucidar o próximo), Alison (garota arrasada pela morte da mãe, vitimada por um câncer, envolve-se sexualmente com o chefe e é paulatinamente engolfada por aquela mesma espiral) e Nicksy (sua jornada por uma montanha de lixo, em busca de um cachorro que jogaram ali, quando se depara com algo muito pior, é uma das melhores passagens do livro), além, é claro, de Renton.
A estrutura permite que o leitor vislumbre não só os narradores de cada trecho, como também os outros personagens, de perspectivas diversas e não raro conflitantes. Além disso, essa alternância (há também capítulos narrados em terceira pessoa, como o derradeiro, longo e excruciante como poucos) mantém o romance em alta voltagem, sem que haja tempo para quedas de ritmo.
E, por mais violentos e nojentos que sejam os acontecimentos narrados, Welsh jamais se distancia dos personagens ou os julga. Mesmo em seus piores momentos, quando se assemelham às “árvores apodrecendo de um lado da West Grand Road”, às “pessoas dentro de apartamentos varicosos”, pessoas que também se encontram “em decomposição” ou, pior, lançada nas ruas para, por assim dizer, decompor o outro, os personagens não são desumanizados. Pelo contrário, a irrefreável aproximação empreendida pelo autor como que nos força a um entendimento de que, querendo ou não, somos “parceros” na medida em que habitamos uma mesma e ruinosa realidade.
Por fim, seguindo por esse mesmo espírito compreensivo, convém recorrer às linhas traçadas por Renton em seu diário de reabilitação: “Passo o resto da manhã escrevendo, escrevendo, escrevendo. Sinto prazer o tempo todo sentindo a ponta afiada e macia da caneta puxando minha mão por cima da página. Comecei a acreditar que tudo que a gente escreve, não importa quão tosco e banal, possui algum tipo de significado”. Belas palavras. Lendo Skagboys, que nada tem de tosco ou banal, é difícil discordar do jovem Renton.