Distopia brutalista

Resenha publicada em 31.03.2013 no Estadão.

battle

Distopias são frequentes na literatura e no cinema. O sucesso de Jogos Vorazes, de Suzanne Collins, e, antes, de investidas tão díspares (e bem superiores) como as de Aldous Huxley (Admirável Mundo Novo) e George Orwell (1984), se dá porque vivemos em um status quo mais ou menos similar. Nessa longa tradição distópico-literária, Battle Royale deve ser colocado em lugar de destaque. Violentíssimo e controverso, o best-seller assinado por Koushun Takami ganha, enfim, uma edição brasileira.

A história se passa em uma realidade alternativa. Estamos em 1997, em um Estado totalitário conhecido como República da Grande Ásia Oriental. Descrito como “um regime fascista bem-sucedido”, um “tipo peculiar de socialismo estatal, cujo ápice é o detentor do poder máximo denominado Supremo Líder”, o lugar faria Magda Goebbels chorar de emoção. Dentre as inúmeras ações governamentais opressivas, está “o pior jogo de dança das cadeiras de toda a história”, o Programa: uma simulação de batalha “instituída por razões de segurança e conduzida pelas Forças Especiais de Defesa”, onde “alunos do nono ano de escolas de ensino fundamental são selecionados aleatoriamente” e, claro, “forçados a lutar entre si até que reste apenas um sobrevivente”. Ao sobrevivente, o “vencedor”, será “assegurada uma pensão vitalícia e um cartão autografado pelo Supremo Líder”.

Lançado no Japão em 1999, Battle Royale teve duas adaptações para o cinema e também chegou aos mangás, em série roteirizada pelo próprio Takami. As semelhanças com Jogos Vorazes são claras, embora Collins tenha afirmado que sequer ouvira falar do romance japonês até finalizar o seu. No entanto, as diferenças talvez sejam mais significativas. Cito duas: o Programa não é televisionado; os “jogadores” não são estranhos entre si, mas colegas de sala, namorados, companheiros, pessoas que se conhecem há tempos. Ademais, Battle Royale comporta uma brutalidade que o afasta ainda mais da trilogia de Collins, comparativamente menos gráfica nesse quesito.

Nas quase setecentas páginas do livro, Takami dedica bastante tempo à maior parte dos personagens, explicando motivações, explicitando melhor e aos poucos determinadas circunstâncias e jogando com os diversos pontos de vista e as expectativas do leitor. Por mais que sofra de um certo didatismo (o psicologismo nem sempre funciona) e de um lirismo meio desajeitado nas cenas mais intimistas, é inegável o domínio do autor quanto à estrutura traçada, à cadeia de acontecimentos e à escalada aterradora de violência.

Entre os “jogadores”, há o trio protagonista (Shuya, Noriko e Shogo), um antagonista implacável (Kazuo) e uma vilã (Mitsuko) cuja complexidade talvez seja a melhor ou a mais tragicamente construída dentre os personagens. A história de Mitsuko, revelada primeiro como mentira e depois como verdade, guarda detalhes de uma sordidez insuportável e é um exemplo, pela forma com irrompe, do domínio narrativo de Takami: pela boca dela, é uma farsa; pela voz do narrador, não; e, depois, pensando retrospectivamente, pela boca dela é uma verdade excruciante, verbalizada em meio a uma farsa de que ela lança mão para sobreviver no Programa.

Em Battle Royale, acima de tudo, há uma espécie de trânsito entre diversas violências: do Estado como um todo; do Programa, cuja finalidade permanece obscura (“Invencionice de gente insana”, diz um personagem. “Como o país inteiro é absurdo, devemos considerar isso normal.”); e o modo como a violência escolar, cotidiana, de certo modo ecoa, milhões de graus acima, na brutalidade do “jogo”. Ao final, Takami opta por dar outro impulso à roda, criando um desfecho que reitera o trânsito citado e a força da distopia criada.