Resenha publicada no Estadão em 21.10.2025.
Central Europa, um dos melhores romances do século XXI, é lançado no Brasil.
Antes de nos concentrarmos em Central Europa (Companhia das Letras, tradução de Daniel Pellizzari), convém apresentar seu autor, cuja originalíssima produção ficcional era até o momento ignorada pelas editoras brasileiras — em 2010, a Conrad publicou o ensaio Por que vocês são pobres?, traduzido por Michele de Aguiar Vartuli. Não que o californiano William T. Vollmann (1959) seja conhecidíssimo nos Estados Unidos, na Europa ou onde quer que seja. Central Europa foi agraciado com o National Book Award em 2005, mas convém lembrar a piada que o filho de outro gigante, William Gaddis (ele próprio “bicampeão”), fez sobre tal prêmio: para a maioria esmagadora do público, NBA significa National Basketball Association.
Há outra característica que costuma afastar os leitores (e também alguns editores) da obra de Vollmann: a extensão de vários de seus livros, tanto os de ficção quanto os de não ficção. The Dying Grass, sua obra-prima, ostenta irretocáveis 1356 páginas; a edição original de Rising Up and Rising Down, ensaio portentoso acerca da violência, soma 3352 páginas; e o próximo romance do autor, A Table for Fortune, a ser lançado em março de 2026, terá 3400 páginas. Perto disso, com míseras 768 páginas, Central Europa não passa de um catatauzinho.
Alternando ficção, ensaios e alguns tomos notáveis de pesquisa e reportagem, como Imperial, ou misturando tudo isso (The Rifles), Vollmann encontrou uma forma única de lidar (sem ser engolido) com o tsunami pós-modernista surfado por autores como John Barth, Thomas Pynchon, Joseph McElroy e David Foster Wallace. Ele desenvolveu uma abordagem musculosa que lembra John Steinbeck, mas com uma dicção particularíssima, conforme podemos observar neste trecho de Central Europa: “As florestas verdejavam ensandecidas e veranis, nutridas por atrocidades. Parecia a Gerstein, tamanha a profusão de folhagens, que o trem agora passava por dentro da terra, e por alguma ilusão o tremular das folhas lembrava veios de calcedônia cristalina. Afinal de contas já anoitecia, o céu ficando azul-da-prússia pelas janelas do trem. Mais adiante se estendia a ainda mais abundante escuridão folhosa do verão na zona rural polonesa. (Mas a Polônia, é claro, tinha deixado de existir.)”. Talvez seus melhores romances sejam aqueles pertencentes ao ciclo Seven Dreams, um gigantesco (quase 4 mil páginas até o momento) painel da colonização da América do Norte formado pelos romances The Ice-Shirt, Fathers and Crows, Argall e os já citados The Dying Grass e The Rifles. Vollmann ainda não “sonhou” dois dos sete livros planejados. Torçamos para que ainda faça isso.
Seven Dreams é um bom gancho para enfim chegarmos à obra resenhada aqui, pois o autor traça uma distinção importante entre suas investidas na seara dos romances históricos: Central Europa não tem “uma base tão rigorosa em fatos históricos” quanto o ciclo supracitado, constituindo “uma série de parábolas sobre agentes morais europeus — famosos, famigerados ou anônimos — em momentos de decisão”. Eis uma boa forma de descrever esse romance que abraça boa parte do século XX, e cujo centro (a partir do qual as “parábolas” espiralam) é a Segunda Guerra Mundial. Assim, entre os personagens reais que Vollmann recria e ficcionaliza ao longo de suas páginas, estão artistas como o compositor russo Dmitri Chostakóvitch, a artista plástica alemã Käthe Kollwitz e a poeta russa Anna Akhmátova, os indefectíveis tiranos Adolf Hitler (“sonâmbulo”) e Josef Stálin, e muitos outros. Por ter atravessado o grosso do século XX, sobrevivendo aos expurgos de Stálin, à invasão nazista e à esquizofrenia da Guerra Fria, Chostakóvitch é a figura que pontua a coisa toda, como um tema recorrente.
Em um livro tão extenso e nada convencional, convém ressaltar a estruturação inteligente que apresenta os capítulos aos pares, às vezes alternando seções longas e curtas, mas sempre complementares. É assim que observamos, por exemplo, o contraponto narrativo nas histórias de Vlasov (general soviético que se tornou colaborador nazista) e Paulus (oficial nazista que se aliou aos soviéticos para denunciar os crimes hitleristas e foi testemunha de acusação no Julgamento de Nuremberg). O primeiro protagoniza o capítulo “Ruptura”; o segundo é “O último marechal de campo”. Vollmann também usa personagens como Kurt Gerstein, um “evangélico infiltrado” nas SS-Totenkopfverbände (as “unidades da caveira” que administravam o Holocausto), para arriscar novas abordagens de temas já muito explorados. Além disso, ele é um mestre na criação de primeiras pessoas que oferecem perspectivas “internas”, por assim dizer, como as vozes do agente soviético Aleksandrov (que vigia e acossa Chostakóvitch) e de um soldado nazista em “Operação Cidadela” — “Quantos outros milhares teríamos de matar? O trigo subia até os ombros de nossos cavalos de aço, e então nos afogava”.
Vollmann também resgata indivíduos hoje um tanto obscuros, como a atriz alemã Lisca Malbran, cuja presença fantasmagórica paira sobre a derrocada do Terceiro Reich, e Hilde Benjamin, a ministra da justiça na Alemanha Oriental que vingou a perseguição que sofrera dos nazistas condenando inúmeros dissidentes e desafetos à morte; por tais expurgos, foi gentilmente apelidada de “Guilhotina Vermelha”.
Não obstante as atrocidades narradas, o que fica após a leitura é a resistência não raro silenciosa de indivíduos como Chostakóvitch. São exemplos como os dele que levaram Vollmann a afirmar, numa entrevista ao jornal Frankfurter Allgemeine em 2013, que Central Europa “é um livro otimista”, pois, ainda que a “nossa existência esteja sujeita a um controle total, ainda podemos permanecer nós mesmos até certo ponto”. Eis algo que também podemos dizer acerca desse autor e de seus esforços sem paralelos na literatura contemporânea.