Resenha de “Sem despedidas”, de Han Kang

Resenha publicada em 20.05.2025 no Estadão.

PROCISSÃO DE FANTASMAS
Em Sem despedidas, Han Kang recria traumas do passado sul-coreano.

Em uma nota ao final de Sem despedidas (Todavia, tradução de Natália T. M. Okabayashi), a nobelizada sul-coreana Han Kang afirma: “Espero que esta seja uma obra sobre amor genuíno”. Em seus piores momentos, de fato, o livro se deixa contaminar por pieguices dessa natureza, como se traísse o material — inclusive histórico — sobre o qual é erigido. São momentos raros, felizmente. Em sua maior parte, e não obstante o gesto de amizade que coloca a narrativa em movimento, ele pode ser lido como um romance sobre ódio genuíno.

Afinal, o evento histórico reconstituído em suas páginas diz respeito ao massacre de trinta mil pessoas ocorrido na ilha de Jeju em fins da década de 1940 (sem falar nas mais de duzentas mil assassinadas no restante da Coreia do Sul logo depois). Somos informados de “um comando do exército americano para impedir a propagação de simpatizantes do comunismo”, o qual foi levado a cabo com máxima crueldade por militantes de extrema direita e outros assassinos. Para se ter uma ideia, a “insanidade de apontar uma arma para a cabeça de um recém-nascido era algo permitido, ou melhor, recompensado; assim, mil e quinhentas crianças menores de dez anos foram mortas” naqueles dias. Não muito depois, estourou a Guerra da Coreia e os aprisionamentos ilegais, as torturas e as matanças prosseguiram e se intensificaram.

Em vista de tudo isso, não surpreende que Sem despedidas inicie com um pesadelo ligado a tais violências. A narradora, Kyung-ha, escreveu um livro sobre o massacre e agora se vê sozinha, sem “parentes de quem cuidar nem um emprego” que a ocupe, incapaz de se reconciliar com sua “existência humana”. No entanto, ela não hesita em atender a um pedido da amiga Inseon, fotógrafa e documentarista que, isolada em Jeju para cuidar da mãe enferma, passou a se dedicar à marcenaria e lá permaneceu mesmo após a morte da genitora. Inseon corta os dedos indicador e médio ao usar uma serra elétrica e é transportada às pressas para um hospital em Seul, onde se submete a um tratamento dolorosíssimo que intenta evitar o fracasso dos reimplantes. O pedido que ela faz a Kyung-ha é que, em meio a uma nevasca, viaje para Jeju a fim de alimentar um pássaro de estimação.

Após uma jornada acidentada e desesperadora, Kyung-ha chega à casa isolada de Inseon e se depara com o bicho morto na gaiola, algo “suave que não está mais quente”. O enterro improvisado do pássaro é o ponto de virada do romance, o momento em que Sem despedidas assume uma levada fantasmagórica na qual as memórias dos massacres ocorridos décadas antes são resgatadas em meio a restos e sombras.

Usando Kyung-ha como uma espécie de catalisador, as vozes dos que partiram e dos ausentes (incluindo Inseon) invadem a narrativa, em uma sucessão de testemunhos entrecortados que, pouco a pouco, reconstituem o passado da família de Inseon, os massacres e a luta da mãe dela para fixar aquelas lembranças e recuperar os ossos dos mortos, incluindo os de um parente próximo.

“Existe isso de querer ver, mesmo que só tenha restado a sombra?”, pergunta a narradora a certa altura. Acaso não existisse, Sem despedidas seria um romance malogrado. O esforço reconstitutivo realimenta um projeto sempre adiado das amigas, prenunciado pelo pesadelo que abre a história e incorporado pelo próprio livro. Em Han Kang, contrariando a máxima joyciana expressa por Stephen Dedalus no segundo capítulo do Ulysses, a história é um pesadelo do qual não se tenta acordar e, mais do que isso, procura-se organizar em meio a uma procissão de fantasmas.