Órbita comprometida

Resenha publicada em 17.05.2025 no Estadão.

QUANDO NADA ACONTECE
Samantha Harvey não sobrevive à reentrada no premiado Orbital

Parafraseando as palavras de João Guimarães Rosa no conto “O espelho”, quando nada acontece, há um planeta indo para o saco. De fato, uma boa forma de ler Orbital (DBA, tradução de Adriano Scandolara) talvez fosse a seguinte: encará-lo como uma espécie de oração fúnebre ou um lamento surdo pelo que fizemos com a Terra e a nossa própria espécie. O problema é que o romance da inglesa Samantha Harvey, premiado com o Booker Prize 2024, raramente permite isso. As páginas são permeadas por certo otimismo pegajoso, ainda que o tempo avance “com seu niilismo de sempre”. Afinal, olhando lá de cima, tudo é tão bonito, não é mesmo? Incluindo o supertufão que devasta as ilhas Marianas e avança célere para as Filipinas.

O livro se passa na estação espacial (“grande albatroz de metal”) que gira ao redor da Terra a 28 mil quilômetros por hora. Nela, quatro astronautas (dos EUA, Japão, Inglaterra e Itália) e dois cosmonautas (da Rússia, obviamente) estarão por nove meses. A ação, no entanto, é comprimida em 24 horas, no decorrer das quais a estação completará 16 órbitas, cada uma destas correspondendo a um capítulo. Assim, Harvey passeia pelo espaço e pelas cabeças dos personagens, que flutuam “em todos os fusos horários e em nenhum deles”, descrevendo memórias, anseios, medos e reflexões. Mas falar em “ação” aqui talvez seja um exagero.

A japonesa Chie perdeu a mãe. O russo Anton talvez esteja doente. O norte-americano Shaun tem um sonho (quase) erótico com a inglesa Nell (é bom saber que existe tesão no espaço, embora logo arrefeça). Nell pensa no marido (um “desconhecido”) e suas ovelhas lá embaixo. E assim por diante. A narrativa assume essa pegada de “pastoral espacial”, contemplativa. Entediante. E, a exemplo da estação espacial, gira e gira, mas não chega a lugar algum. Apenas fica lá. Girando.

Não é que Harvey escreva mal. Pelo contrário, há imagens excelentes (e o livro é muitíssimo bem traduzido): o “espaço puro é uma pantera, feroz e primitiva; eles sonham que ela ronda seus alojamentos”; “as ilhas parecem, aos olhos de Chie, uma trilha de pegadas secando. Seu país é um fantasma assombrando as águas”; enxergar a Terra “como um modelo matemático de inteligência de enxame”; “sua Terra manca e libertada”; “ela mora no interior das engrenagens de um relógio que está moendo o tempo através de seus ossos”.

A certa altura, o leitor é apresentado ao “problema da dissonância”, algo que acontece com astronautas por conta da “exposição repetida a essa Terra contínua”, com “sua ausência de fronteiras”, “um globo que rola indivisível” sem “muralhas ou barreiras, sem “possibilidade de separação, que dirá guerra” (como na música de John Lennon). E aí surge a dissonância, pois há fronteiras e guerras. Surge o desejo de fazer alguma coisa, de consertar, pois, lá em cima, são “humanos com uma perspectiva divina”. E, depois, percebem a força “da política e das escolhas humanas”, que “moldou todas as coisas” na Terra, “cada calota polar reduzida, cada derramamento de óleo em chamas”. É algo ginasiano e sentimentalista. Ninguém com alguma coisa na cabeça precisa ir ao espaço para chegar a tais conclusões.

O texto da orelha sugere que Orbital é “mais” do que ficção científica, que “não se filia à literatura de gênero” (o tipo de bobagem que só quem desconhece literatura de gênero escreveria). Lendo o romance, contudo, percebemos que o problema não é o livro ser “mais” do que ficção científica: é ser menos. Em suas investidas pretensamente filosóficas, Samantha Harvey não sobrevive à reentrada.