Paisagens fugidias

Resenha publicada em 21.12.2024 no Estadão.

A certa altura do elusivo “As planícies”, o narrador discorre sobre paisagens influentes, mas raramente vistas. Eis aí uma bela forma de apresentar o australiano Gerald Murnane. Nascido em 1939, ele já foi descrito como o maior prosador de língua inglesa sobre quem a maioria das pessoas nunca ouviu falar. Existem alguns autores assim, que parecem trabalhar à margem e, talvez por isso mesmo, produzam obras tão ímpares. O israelense Youval Shimoni e o norte-americano Michael Brodsky são ótimos exemplos de escritores pouco conhecidos, mas estupendos. Voltando a Murnane, o lançamento pela Todavia desse grande romance do autor, em tradução de Caetano W. Galindo, talvez angarie leitores entre os poucos que ainda se interessam por literatura em nosso país escangalhado.

Murnane cogitou se tornar padre, mas abandonou logo essa ideia. Bacharelou-se em artes pela Universidade de Melbourne e lecionou em escolas primárias e no Victoria Racing Club. Depois de ensinar pessoas a montar cavalos, ele passou a lidar com literatos em aulas de escrita criativa, o que não deixa de ser uma curiosa trajetória profissional. Seus dois primeiros romances, “Tamarisk Row” (1974) e “A lifetime on clouds” (1976), são narrativas previsivelmente semiautobiográficas, mas caracterizadas por estilo e abordagens peculiares. O primeiro é um relato sobre a infância no interior do estado australiano de Victoria. O segundo, talvez o livro mais engraçado que escreveu, é dominado pela figura de um adolescente que, vivendo em Melbourne nos anos 1950, reage à repressão católica com uma coloridíssima imaginação sexual.

Publicado em 1982, “As planícies” é o primeiro romance no qual se verifica o que poderíamos chamar de estilo maduro do autor. Não é que os dois trabalhos anteriores sejam “imaturos”, mas, olhando à luz do que ele publicaria depois (incluindo sua obra-prima, “Inland”), temos aqui uma bem-humorada reflexão de ecos metafísicos acerca da própria constituição da realidade. Lemos no parágrafo inicial: “Estava à procura de algo naquela paisagem que apontasse para algum sentido complexo por trás das aparências”.

O narrador sem nome é um suposto cineasta que se lança às planícies da Austrália a fim de produzir um documentário intitulado “O interior”. Ali, encontra a elite local que, ciosa de sua cultura, costuma contratar intelectuais e artistas que, vivendo nos casarões dos proprietários, trabalham para deslindar as peculiaridades ambientes. É um trabalho sempre fugidio, como se a paisagem e os habitantes das planícies esvanecessem por entre os dedos daqueles que procuram fixá-los. Não é de se admirar que os próprios locais discordem entre si e com os contratados, e há páginas e páginas engenhosas e engraçadas sobre querelas filosóficas (vide o conflito entre “Lonjuristas” e “Leporinos”).

Contratado por um desses proprietários, o narrador se muda para o casarão da família do mecenas, onde passa a trabalhar nas anotações que futuramente resultarão (ou resultariam, pois não há indícios de que o filme tenha sido ou venha a ser realizado) no documentário. “Eu já tinha pensado em ‘O interior’ como um conjunto de cenas de um filme muito maior que só podia ser visto de um ponto de observação que eu ignorava por completo”, ele diz. E mais: “Quando meu carro foi entrando pela estrada eu disse a mim mesmo que estava desaparecendo em algum mundo particular e invisível cuja entrada era o ponto mais solitário da planície”; “Não apenas meus anos de leitura mas também minhas longas conversas com homens das planícies (…) me conferem a certeza de que as pessoas daqui concebem a vida como um outro tipo de planície. Não lhes serve de nada a conversa banal a respeito de jornadas que atravessam os anos ou coisas assim”. Como registrar isso?

O último dos trechos citados acima é importante por servir como um comentário acerca do próprio andamento do romance. Não há nele nada parecido com uma progressão narrativa tradicional. A voz do narrador, sobre quem quase nada sabemos, narra pouquíssimas ações e progressões. Temos, na parte inicial, a preparação para o momento (e a descrição do momento em si) no qual o protagonista se colocará diante dos proprietários de terras e discorrerá sobre o projeto cinematográfico que tem em mente, buscando apoio logístico e financeiro. Depois, na segunda metade, há digressões acerca de uma das filhas e da esposa do mecenas, e também sobre este e sua propriedade, sobretudo a biblioteca, onde, aliás, o narrador “dialoga” (em silêncio e imaginativamente, por assim dizer) com a mulher do patrão.

O protagonista nos lembra de que “há poucas chances de que os homens das planícies tomem o que tenho a lhes mostrar por alguma espécie de história”. Na verdade, uma das melhores passagens do livro diz respeito justamente aos livros lidos pela esposa do mecenas, os quais “seriam talvez chamados de romances numa outra Austrália”, embora, nas planícies, eles sejam “um ramo respeitado da filosofia moral”. Há sempre algo de escorregadio nessas caracterizações. A exemplo das paisagens lá fora, é como se tudo fugisse a qualquer categorização: a “essência” das planícies, das pessoas, das leituras, do documentário e do próprio romance é fundamentalmente inapreensível, mas, por outro lado, a tentativa de apreendê-la é incontornável.

Quando lemos “As planícies”, é como se o romance visível, legível, tangível, escondesse outro romance, inalcançável ou mesmo incognoscível. “Estamos viajando em alguma direção no mundo que tem forma de olho”, diz um personagem. “E ainda não vimos as outras terras que esse olho enxerga.” Murnane parece vaguear justamente pelos limites das fronteiras literárias e metafísicas, tangenciando o indizível e oferecendo alguma definição ao indefinível.