[Escrevi este texto anos atrás.
Seria o posfácio de uma nova edição de “Calibre 22”, nunca publicada.
Foto: AP/Guillermo Arias.]
A recepção do terço final da obra de Rubem Fonseca (1925-2020), aquele iniciado após a publicação da obra-prima “Pequenas criaturas” e que engloba desde “Ela e outras mulheres” até “Carne crua”, é um caso exemplar de miopia, preguiça e má vontade por parte dos críticos e resenhistas. Em maior ou menor grau, e salvo por algumas exceções, esses volumes foram mal lidos e mal recebidos. Mas, se levarmos em conta a quantidade de bobagens e chavões ditos até mesmo acerca de seus livros tidos como clássicos (como “Feliz ano novo” e “O cobrador”), essa incompreensão não chega a espantar. E, ironicamente, a irreflexão e a falta de cuidado ecoam à perfeição a abordagem adotada por Fonseca em vários de seus contos mais recentes: se, antes, o autor descrevia as rachaduras nos tetos, paredes, ruas, almas e calçadas, em livros como “Calibre 22” ele se dispõe a enquadrar as ruínas. Em outras palavras, há uma radicalização que traduz o nosso gradual empobrecimento, e uma autoironia que ajuda a sustentar esse olhar ruinoso.
Penúltima coletânea lançada em vida pelo autor, “Calibre 22” traz vinte e nove narrativas que passeiam pela corrupção e pela violência, às vezes assumindo um tom de aparente senescência para melhor dar conta da decrepitude circundante. O mundo nos maltrata e envelhece, e eventualmente nos mata. Como dar conta dele? Como encará-lo, descrevê-lo? Como dar conta do outro, esse (não raro) monstro? E como dar conta de si mesmo em tal contexto? Anos atrás, quando escrevi sobre outro livro do autor (“Amálgama”) para o jornal O Estado de São Paulo, pontuei que os narradores de Fonseca deitam seus olhos exaustos sobre uma realidade tão esgarçada quanto incompreensível. Por mais que as palavras não deem conta dessa avassaladora violência cotidiana, eles insistem em resgatar e descrever as coisas pelas quais passam. Não há, contudo, qualquer tom ou sentido testemunhal — as histórias se sucedem como garranchos nas paredes de um banheiro público; de certa forma, elas são as pinturas rupestres da nossa contemporaneidade. Creio que isso também se aplique a “Calibre 22”.
Aqui e ali, cansados da ineficiência e da surdez do mundo, os personagens desses contos tomam para si a responsabilidade de agir ou reagir. Em “O morcego, o mico e o velho que não era corcunda”, por exemplo, o idoso protagonista dá cabo do assassino de um amigo. Depois de atirar no sujeito, um homofóbico e abusador, ele reclama que a “mão ficou doendo uns dez dias. Aquela Taurus matava, mas era horrível para quem atirava”. A economia da descrição alude a um mal-estar que vai muito além do mero incômodo na mão causado pelo coice da arma. O coice metafísico, por assim dizer, nos atinge desde as entrelinhas.
Uma característica comum a vários narradores de Fonseca é o didatismo: “Eu não disse a Mildred que o avô dela tinha certamente visto o filme Alma em Suplício, no original Mildred Pierce, dirigido por Michael Curtiz, com Joan Crawford no papel principal, baseado no livro de James M. Cain…” (em “Mildred”); “Para exercer bem a profissão, o psicanalista deve regularmente consultar um psicanalista, conforme ensinam vários psicanalistas importantes, como Freud, Lacan, Klein, Winnicott, Bion, Dolto e outros” (em “Fantasmas”); “Você conhece a história do chapéu-panamá, por que ele se chama ‘chapéu-panamá’?” (em “O chapéu-panamá”); no mesmo conto do chapéu, o narrador se incomoda que uma de suas amantes não só fala pelos cotovelos como se dá ao trabalho de explicar a expressão “falar pelos cotovelos”. Como se vê, esse didatismo é muitas vezes divertido, mas não só isso. Ele combina muito bem com o tom autoirônico das narrativas, expondo as idiossincrasias dos personagens e, ao mesmo tempo, aludindo ao que há de artifício na coisa como um todo. Fonseca alcança isso sem recorrer à metaficção propriamente dita (embora também vá por esse caminho de vez em quando, como em “Camisola e pijama”), restringindo-se aos meios, contextos e vozes de seus narradores.
Há, também, uma atenção especial dada aos impostores e às imposturas. Cito alguns exemplos. Em “Fantasmas”, temos uma engenheira florestal que “nunca viu uma floresta na vida”. Celebrado inadvertidamente como um inovador, o escritor de “Camisola e pijama” diz que toda “a literatura e tudo o que se escrevia era sempre a mesma merda”. Outro pretenso escritor, o ex-surfista de “O intrépido”, afirma ser “fácil escrever um livro, surfar é muito mais difícil”, e compreende que tantos escritores tenham se matado, pois “hoje ninguém lê livros de ficção”.
Em “O intrépido”, a opção pela escrita é também uma opção pela morte. Salvo engano, foi o autor francês Philippe Sollers quem disse certa vez que todo escritor faz uma opção pelo futuro, “quando todo mundo estará morto”. Em sua maioria, os narradores de Fonseca não parecem interessados nesse tipo de abstração e, em alguns casos, sequer parecem cientes da possibilidade de uma aposta como essa. O futuro não é vislumbrado ou mencionado, e mesmo o passado só aparece como curiosidade (as interpolações didáticas já mencionadas), chiste (“Sou do tempo em que as pessoas gostavam de ópera, de foder e de sanduíche de mortadela”) ou algo que aponta para a morte física (“Tenho um interesse especial pela morte dos seres vivos em geral, gosto de determinar local e tempo dos incidentes de acordo com a fauna encontrada no cadáver e o estágio de desenvolvimento desta”, em “O escorpião e outros animais”).
Entre impostores, suicidas e loucos, talvez o mais sóbrio e honesto seja o matador em “Um homem de princípios”: “Não gosto de matar barata, nem piolho, nem seres humanos. Não mato por ódio, ciúme, inveja, medo, casos em que o matador é também vítima desse sentimento, ou, se preferem, dessa percepção, ou noção, ou senso, ou consciência. Não conheço as pessoas que eu empacoto. Nada sinto por elas, mas tenho meus princípios”. Note-se nesse trecho o eco de “O cobrador”, mas quase na forma de um negativo — não há o ódio que revisitamos em “Réveillon”, por exemplo: “Matei um Papai Noel, e matar aquele Papai Noel deu-me uma grande felicidade”. Note-se, também, um personagem similar ao do romance “O Seminarista” (está lá o Despachante, mas faltam as citações em latim e a Glock, substituída por uma Beretta). Em “Réveillon”, há outra menção ao “despachante”, mas o exercício gratuito e raivoso da violência aponta para outra direção, esta, sim, mais próxima de “O cobrador”. Com isso, Fonseca enseja uma espécie de contraponto àqueles personagens norteados por “princípios”, como o já citado velho e sua Taurus, o narrador de “Homem não pode bater em mulher”, obrigado a lidar com o vizinho covarde após ser ignorado pela polícia, o sujeito que se depara com um assassino em série em “Gastronomia” ou o vendedor de rua que vai à forra contra um concorrente em “Carnaval”.
É importante ressaltar e sublinhar essas modulações para afastar de vez a noção de que Fonseca estaria “se repetindo” nos derradeiros anos de carreira. Longe disso. Consciente dos desdobramentos de seu estilo e de seus temas, e atento à depauperação material e espiritual sempre em curso no mundo ao redor, ele sempre buscou e encontrou novas formas de recriar literariamente esse recrudescimento das ruínas, algo que vai muito além de quaisquer problemas “sistêmicos”, ideológicos e pontuais. Mesmo quando reencontramos um personagem icônico como Mandrake no conto que dá título ao volume, inexiste a sensação de algo requentado. Ali, a sujidade moral que leva aos crimes (“Ela fez a minha filha se tornar homossexual”) é típica não só do nosso presente desesperador, mas de toda uma história ancorada em massacres, violações e espoliações de toda espécie. É claro que Rubem Fonseca, em “Calibre 22” ou qualquer outro de seus livros, não é um moralizador ou coisa parecida. Ele concebe e ilumina para nós essas pinturas rupestres, esses relatos de um país naufragado, e então, a exemplo de Mandrake, passa “o problema de crer-ou-não-crer adiante”.