Com Búfalos selvagens, Ana Paula Maia encerra sua trilogia apocalíptica.
Resenha publicada no Estadão.
A “Trilogia do Fim” compreende os romances Enterrem seus mortos, De cada quinhentos uma alma e Búfalos selvagens, todos publicados pela Companhia das Letras. Neles, Ana Paula Maia trafega pelo interior de um mundo colapsado na companhia de Edgar Wilson, personagem recorrente em quase toda a ficção da autora, especialista em fazer o “trabalho sujo dos outros”: recolher carcaças em rodovias, abater animais em matadouros, lidar com a sujeirada do mundo. Como é dito em De gados e homens, romance de 2013 que antecipa o esgarçamento que observamos na “Trilogia do Fim”: “Alguém precisa fazer o trabalho sujo. O trabalho sujo dos outros. Ninguém quer fazer esse tipo de coisa. Pra isso Deus coloca no mundo tipos como eu e você”.
Mesmo em um ambiente degradado, no qual a escuridão “engoliu a Terra, levando-a para os abismos de um deus”, sempre há trabalho sujo a ser feito. Em Búfalos selvagens, reencontramos Edgar Wilson circulando pela estrada, recolhendo corpos de animais e levando-os para serem triturados. A impressão é de que o (ou um) fim do mundo veio e já passou, levando consigo nacos inteiros da realidade e dos personagens. O livro remete a acontecimentos da obra anterior, De cada quinhentos uma alma, como a pandemia não identificada que varreu o mundo: “Antes havia o silêncio, o desaparecimento dos vermes necrófagos e a iminência do fim de todas as coisas. Mas esse fim recaiu sobre a Terra como raios diluídos”. O que ocorreu, portanto, foi uma espécie de apocalipse parcial, do tipo que — ilusoriamente ou não — permite algum recomeço àqueles que sobreviveram.
E é nesse espírito que Edgar Wilson aceita o convite para voltar a trabalhar em um matadouro, ocupação que já tivera em De gados e homens. Mas, agora, em vez de gado, lidará com búfalos, ciente de que todos “seguem para a morte”, todos compartilham da “mesma angústia”, do “mesmo espectro das próprias trevas”. O cadáver de um palhaço na rodovia e o mistério que cerca a sua morte, a bizarrice das apresentações de um autoproclamado “Circo das Revelações”, no qual uma vidente oferece algum conforto à arraia-miúda (procure não se espantar com Boris, o galo), e uma confusão envolvendo a origem dos búfalos levados ao matadouro se misturam em uma narrativa no qual importam menos quaisquer peripécias e mais a rotina dos trabalhadores, por um lado, e as digressões, por outro. As intrigas comezinhas são resolvidas rapidamente, sem maiores pirotecnias, e o homicídio aponta para o mistério maior e inexplicado, relacionado à vidente.
Mas, claro, não há descanso. No recomeço ensaiado em Búfalos selvagens, quase tudo aponta para a morte: “Edgar Wilson precisa enterrar todos os mortos, ainda que aparentemente estejam vivos e andando sobre a terra. Ainda não é tempo de paz, ainda não é tempo de descansar”. É nesse sentido que o romance assume suas feições apocalípticas: todo fim enseja um recomeço, redentor ou não. Tal caráter é afirmado em mais de uma passagem, ainda que, em pelo menos em um caso, a ressurreição surja como uma piada impagavelmente doentia.
Por fim, há que se ressaltar a organicidade do projeto. Em uma rápida folheada de outros livros da autora, lemos: “Até os cães comem os próprios donos com lágrimas nos olhos” (Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos); “Olha comovido a pilha de carvão animal ao lado da pilha de carvão mineral. Não é possível identificar qual é mais negro. Se misturados, homens e fósseis se confundiriam” (Carvão animal); “Todos são matadores, cada um de uma espécie, executando sua função na linha de abate” (De gados e homens)”; “Ali vai o homem que sepulta os mortos no rio e que faz reviver um novo ser humano. A única maneira de nascer de novo é morrendo” (Enterre seus mortos). Na construção de seu inferno nada provisório, Ana Paula Maia ostenta exemplares domínio estilístico e clareza de propósitos.