Artigo publicado no Estadão.
DA AMBIVALÊNCIA AO CINISMO
Obras de Jünger e Céline nos transportam à Primeira Guerra Mundial de formas genialmente distintas
A Primeira Guerra Mundial chegou ao fim há 106 anos, mas a sujidade das trincheiras e as explosões dos obuses ainda se fazem literariamente presentes: Tempestades de aço, clássico do alemão Ernst Jünger originalmente lançado em 1920 (quando a lembrança do conflito ainda fritava na memória das pessoas), acaba de ganhar uma reedição pela Carambaia, com tradução e posfácio de Marcelo Backes; e Guerra (Cia. das Letras), escrito no começo da década de 1930, mas só publicado na França em 2022, é um exemplar formidável (embora inacabado) da prosa do francês Louis-Ferdinand Céline, em tradução de Rosa Freire d’Aguiar. Falemos um pouco dos autores.
Céline, pseudônimo de Louis Ferdinand Auguste Destouches (1894-1961), niilista e femeeiro, é responsável por um dos maiores romances do século XX, o qual também parte de (mas não se limita às) suas experiências nas trincheiras: Viagem ao fim da noite. O manuscrito de Guerra foi roubado do apartamento de Céline ao final da Segunda Guerra, quando ele fugia dos aliados e da resistência francesa, pois publicara panfletos antissemitas e era citado com frequência pela imprensa colaboracionista. Prenderam-no na Dinamarca em dezembro de 1945. Solto em 1947 e obrigado a permanecer no país escandinavo, foi julgado e condenado in absentia na França, mas anistiado por ser um veterano da Primeira Guerra. Retornou ao país natal em 1951.
Jünger (1895-1998), filho de um empresário afluente, foi membro do movimento Wandervogel (anti-industrialista e teutônico até a medula) e, sedento por ação, chegou a se alistar na Legião Estrangeira, pelo que quase foi preso. Por “sorte”, veio a Primeira Guerra, ele se juntou às fileiras alemãs e, no decorrer do conflito, foi ferido mais de uma dezena de vezes. Suas experiências são brilhantemente narradas em Tempestades de aço. Durante a República de Weimar, seguiu militando contra valores liberais-democráticos, mas não se deixou seduzir por Hitler e cia. Em 1943, lotado como capitão do exército regular na Paris ocupada, escreveu o ensaio Der Friede (“A Paz”), no qual se coloca frontalmente contra o nazismo e advoga a criação de uma federação europeia que evitasse novos confrontos armados. Indiretamente implicado no atentado de 20 de julho de 1944 contra Hitler, acabou dispensado do exército. No mesmo ano, por razões também políticas, seu filho mais velho foi sentenciado ao “batalhão penal” e morreu em combate na Itália. Nas décadas subsequentes, Jünger viajou e escreveu bastante, aprofundou seu ideário individualista e conservador e experimentou drogas (sobretudo mescalina e LSD). Morreu aos 102 anos de idade.
Jünger e Céline são criaturas bem diferentes. Em Tempestades de aço, a guerra é descrita como uma experiência quase mística, em consonância com a natureza e apontando para a essência elusiva da existência (não por acaso, Heidegger foi um leitor atento de seu conterrâneo). Em Guerra, não há vestígios de quaisquer transcendências, tudo é carne, é “terra podre por todo lado”, e a prosa crua descreve a guerra e a vida como gratuitas e sem sentido.
O romance de Céline se passa em 1914 e não vai às trincheiras, por assim dizer: ferido, o narrador é levado para um hospital na retaguarda, onde lida com uma enfermeira licenciosa, a estupidez dos pais e um coleguinha militar que prostitui a própria esposa e acaba se estrepando em grande (e baixíssimo) estilo. Exemplos típicos da voz de Céline: “Peguei a guerra na minha cabeça. Ela está trancada na minha cabeça”; “Nunca vi ou ouvi alguma coisa tão nojenta quanto meu pai e minha mãe”; “Bater as botas, ainda é possível aceitar, mas o que esgota a poesia é tudo o que precede, toda a charcutaria, as futricarias, as torturações que precedem o soluço final. Portanto, é preciso ser bem breve ou bem rico”; “Em matéria de experiência, eu envelhecia um mês por semana. É no ritmo em que se deve ir para não ser fuzilado na guerra”.
Tempestades de aço se filia à tradição bélico-literária ocidental que, conforme aponta Marcelo Backes no posfácio, remonta à Ilíada de Homero. Mais do que uma invenção humana, a guerra é encarada como um fato incontornável da natureza. Jünger narra suas experiências no front, entre 1915 e 18, com sobriedade, mas não distanciamento. Fiel ao individualismo, ele deplora a mecanização do confronto — prefere o combate corpo a corpo, no qual se sobressai a destreza de cada soldado. O apego ao caráter imediato e fenomênico da coisa e a extrema elegância da prosa impedem que o livro seja facilmente rotulado: há quem o considere belicista, há quem o ache neutro e há até quem enxergue ali um teor antibelicista. O que importa é que o homem escrevia bem demais: “Ali imperava a grande dor, e pela primeira vez eu vislumbrava as profundezas de seu reino através de uma fresta demoníaca. E as explosões não paravam”; “A concentração monstruosa das forças na hora decisiva em que se lutava por um futuro distante e o desencadeamento que se seguiu a ela de modo tão surpreendente e abalador haviam me conduzido pela primeira vez às profundezas de regiões suprapessoais. Isso era diferente de tudo o que eu vivenciara até então; era uma iniciação que não apenas abria as câmaras incandescentes do horror, mas também as atravessava do princípio ao fim”.
O fato de Tempestades de aço ter sido escrito logo após o confronto contribui para o frescor e a ambivalência que tornam a obra atemporal. Em Guerra, redigido quase duas décadas após o fim da Grande Guerra, é justamente o distanciamento que ajuda a depurar a prosa cínica de Céline. Lidas em sequência, as obras são antagônicas e complementares, e ressaltam as violentas contradições inerentes a qualquer conflito armado e a qualquer indivíduo.