Cantos XIV e XV

Os Cantos XIV e XV recorrem à Divina Comédia e vemos Pound circulando por um inferno repleto de banqueiros, editores de jornais, escritores picaretas e outros “perversores da linguagem” e da ordem social. Nesse inferno poundiano, Dante e Plotino assumem o papel de guias que, nas duas primeiras partes da Comédia, cabe a Virgílio.

 

CANTO XIV

“Io venni (…) muto”: Inferno V, 28, a chegada de Dante ao segundo círculo infernal — “vim a um lugar mudo de todo lume”. Pound desce à escuridão para, ao final do Canto XV, voltar à luz. Seu inferno terá três elementos formais: escuridão, turbulência e barulho.

“……….e”: David Lloyd George (1863-1945), político liberal britânico e primeiro-ministro à época da Grande Guerra. (Nos Cantos, os nomes que aparecem assim disfarçados têm o mesmo número de pontos que o de letras.)

“………n”: Woodrow Wilson (1856-1924), político norte-americano, presidente dos EUA entre 1913 e 1921. Pound criticava Wilson por ter demorado muito a se envolver na guerra, pelo aumento da burocracia e pelo uso desajeitado da linguagem oficial.

“………r”: Alfred James Balfour (1848-1930), político britânico conservador, primeiro-ministro entre 1902 e 1905 e ministro das relações exteriores no cabinete de Lloyd George durante a guerra.

“………m”: Arthur Hamilton Lee, visconde de Fareham (1868–1947), soldado, diplomata e filantropo britânico. Durante a guerra, foi diretor-general da produção de alimentos; depois, tornou-se Ministro da Agricultura. Pound comparou o presidente norte-americano Harding a Balfour e Fareham, dizendo que, por trás de sua elegância, eles eram demagogos e negligenciavam a linguagem de forma criminosa.

“………..f”: Basil Zaharoff (1849-1936), nascido na Turquia como Zacharias Basileos, foi um criminoso, sabotador e corrupto. Na guerra, vendia armas para ambos os lados do conflito. Tornou-se negociante de armas da Nordenfelt Armament e, depois, um diretor na Vickers Armstrong. Foi condecorado com Ordem do Banho e a Ordem da Jarreteira após a guerra.

“……..n e a malta da imprensa”: o escritor e jornalista Gilbert Keith Chesterton (1878-1936), odiado por Pound como um picareta e um dos maiores responsáveis por um sistema no qual jornalistas escreviam sobre coisas e pessoas que mal conheciam, escondendo a própria ignorância por meio do estilo.

“Pearse”: Patrick Henry Pearse (1879-1916), líder do Sinn Fein e comandante das forças irlandesas no Levante da Páscoa de 1916, executado após se render. “MacDonagh”: Thomas MacDonagh (1878-1916), patriota irlandês engajado no Levante, também executado. “Capitão H”: Capitão J. Bowen Colthurst (1880-1965), oficial do exército britânico, veterano da Primeira Guerra e que lutou contra os irlandeses no Levante. Descobriu-se que ele atirou em prisioneiros irlandeses e matou civis pelas ruas. Depois de grandes esforços e insistência, foi julgado por uma corte marcial e preso no Broadmoor Criminal Asylum, mas solto um ano depois. Ele, então, emigrou para o Canadá, onde viveu bem e a salvo do IRA. “Capitão H” é um erro de impressão; nos rascunhos de Pound, está “Capitão B”.

“Verres”: Gaius Verres (120-43 a.C.) foi um administrador romano extremamente corrupto, indiciado por Cícero.

Pound tinha uma péssima opinião sobre Calvino (1509-64), a quem considerava um estúpido por pretender aplicar as leis concebidas para uma tribo nômade aos cidadãos modernos. Claro que o antissemitismo de Pound já se insinua nessa opinião; no Guide to Kulchur, ele se refere aos “textos” e aos “registros bárbaros dos hebreus”.

O verso “untuoso como o céu sobre Westminster” remete à “cidade irreal” (e aos versos seguintes) de Eliot em “A Terra Devastada”, que Pound tinha acabado de revisar quando escreveu este Canto.

“…………..”: Giacomo Polo Givanni della Chiesa (1854-1922), ou papa Bento XV (1914-1922), tentou interceder pela paz, mas foi ignorado pelos políticos da época. Pound o ridiculariza por conta de sua estridente propaganda pelo controle sexual.

“pets-de-loup”, “peidos de lobo”: apelido dos eruditos e acadêmicos, a quem Pound também culpava pela perversão da linguagem e da literatura.

“……….m”: Arthur Foley Winnington-Ingram (1858 –1946), bispo de Londres de 1901 a 1939, moralista ferrenho que encabeçou uma campanha para “limpar” Londres da prostituição, da promiscuidade e do…teatro.

 

CANTO XV

Grasse é uma cidade no Sul da França, famosa por sua importância na indústria do perfume.

“……….r”: Balfour, de novo. A seguir, “…..Episcopus…..sis” é Winnington-Ingram, a quem Pound aplica a mesma pena que, no oitavo círculo do Inferno de Dante, recebem os religiosos culpados de simonia: é enterrado de cabeça para baixo, as pernas deixadas para fora. Winnington-Ingram também era famoso por apreciar golfe, daí a menção ao “grupo de golfistas femininos”.

“……..n”: Edward Carson (1854-1935), político irlandês unionista, participou da divisão da Irlanda em 1921. ERRATA: edição brasileira, que está um “….m”.

“………h”: Karl Theodor Helfferich (1972-1924), político, economista e financista alemão. Tido por Pound como um “incitador da violência”, foi contra o Tratado de Versalhes, a República de Weimar e o pagamento de reparações pela guerra. Foi importante para criar o clima que favoreceu a ascensão do nazismo.

“………ll”: Churchill, é claro.

“USURA”: no inferno poundiano, é o monstro que preside o inferno. Pound concordava com a visão de C. H. Douglas de que os bancos foram importantíssimos para financiar a Primeira Guerra, lucrando horrores com a carnificina.

“laudatores temporis acti”, “admiradores dos tempos passados”. É de Horácio, “Ars poetica” 173. No original, lê-se: “Laudator temporis acti”.

“fabianos”: a Sociedade Fabiana foi fundada em 1884, na Inglaterra, como um grupo socialista comprometido com um lento, mas seguro progresso rumo à justiça social. O nome vem do general romano Quinto Fábio Máximo (275 –203 a.C.), apelidado de “Cunctator” (“Procastinador” ou “Protelador”) por ter enfrentado o exército de Aníbal por meio de manobras evasivas, evitando o conflito aberto (pense no Atletico de Madrid do Simeone). Sob a orientação de Sydney e Beatrice Webb, os fabianos contribuíram para a formação do partido Trabalhista em 1900, do qual são afiliados desde então. Eles propuseram a criação do salário mínimo em 1906 e a fundação do serviço nacional de saúde em 1911, entre outras coisas. Também fundaram a London School of Economics em 1900. Pound era um crítico dos fabianos por achar que eles subsumiam o indivíduo à arregimentação.

“…….s”: Cyrus Hermann Kotzschmar Curtis (1850–1933), editor norte-americano do Saturday Evening Post e do Ladies’ Home Journal. “………….ffe”: Alfred Harmsworth, Lorde Northcliffe, dono do Times e do Daily Mail, entre outros; ERRATA: na edição brasileira, está um “…..e”.

“et nulla fidentia inter eos”, “nenhuma confiança entre eles.”

“dorsos contraídos”: referência ao Inferno XVII, 46-57, em que os usurários ficam de pé sobre um chão quente, sob uma chuva de fogo.

“……….c”: The New Republic, revista norte-americana de opinião fundado em 1914 por Herbert Croly, Walter Lippmann e Walter Weyl. A publicação influiu na decisão de Wilson de engajar os EUA na Primeira Guerra. Pound afirma que muitas das revistas britânicas eram cópias da TNR.

“…….nn”: Walter Lippmann (1889-1974), jornalista norte-americano, um dos fundadores da TNR. Após a guerra, tornou-se conselheiro de Wilson e ajudou a conceber a Liga das Nações.

“meu guia”: Pound escolhe Dante e depois Plotino como guias; aqui, como sugere o “Andiamo” alguns versos depois, ele está sendo guiado por Dante.

“Neste bolge“: com relação aos Malebolge (“maus bornais”) no oitavo círculo do Inferno dantesco, Pound parece se referir ao décimo e último deles, o dos falsificadores.

“… o sugar do lodaçal”: segundo Plotino, a alma do homem é parte do mundo das formas eternas e inteligíveis (o nous), e também de um corpo mortal e, portanto, comprometida com a materialidade da experiência sensorial. Assim, a alma pode ser engolfada pela matéria, caso não separe as duas esferas e não aspire se reunir com a parte de si ligada ao nous. O “ele disse” a seguir se refere a Plotino (c.205-270), que viveu em Alexandria e Roma.

“… olhos no espelho”: assim como Perseu matou a Medusa ao se fixar no reflexo dela em seu escudo (presenteado por Palas Atena), Pound usa isso como metáfora do seu comprometimento com a razão e o estudo (isto é, com os “reflexos”. A história da Medusa é bem conhecida e está nas Metamorfoses (IV, 765-804). O uso que Pound faz do escudo (“petrificando o solo”, “traçou firme a trilha” — ERRATA na edição brasileira: “escuro” em vez de “escudo”) alude à estupidez e à ignorância que encontrou na Inglaterra pós-Primeira Guerra.

“Fosse em Naishapur ou Babilônia”: verso do Rubaiyat, de Omar Khayyam.

“‘Hέλιoν τ’ ‘Hέλιoν”, “o sol, o sol.”