Cadarços

Ficção.

 

 

1.
Meu primo andava preocupado por aqueles dias (os dias que precederam a fatalidade), precisava dar baixa em uma empresa para que pudesse abrir outra, dessas coisas burocráticas que, de uns tempos para cá, mais do que nunca, a gente precisa fazer para que nos autorizem a fazer outra coisa burocrática. Ao que parece, as leis sancionadas pelo antigo presidente e mantidas pelo filho dele, que o sucedeu, exigem que se dê vários passos para trás antes que seja possível (ou permitido) se arrastar uns míseros centímetros para a frente ou, o que é mais comum, para um dos lados. Não entendo muito dessas coisas, nunca abri ou fechei empresas, nunca empreendi, como o meu primo costumava dizer, meio sério (ou sério e meio), mas tenho plena consciência de que, em nosso país, a vida é uma questão de carimbos. O carimbo certo no documento correto, desde que este seja carimbado no momento oportuno e pela mão apropriada, é o que não raro separa uma existência mais ou menos bem-sucedida de um desastre absoluto e incontornável. Não acredita em mim? Saia à rua e dê uma olhada: há uma quantidade absurda de desastres absolutos e incontornáveis andando por aí, implorando por uns trocados, um pouco de comida ou uma dose de cachaça. Pergunte a qualquer um deles, qual é a sua história, camarada?, e tenho certeza de que, em algum momento, haverá uma menção à falta de um carimbo ou o lamento por um carimbo equivocado, fiz isso em vez de fazer aquilo, levei o documento x em vez do y para que carimbassem, me mandaram para a repartição errada, perdi o prazo e, com o prazo, perdi a minha chance, perdi tudo e aqui estou, tem um trocado, patrãozinho? Ao que parece, é preciso observar o καιρός com relação aos carimbos e a tudo o que eles envolvem, não se trata apenas da ordem cronológica, primeiro esse carimbo nesse documento, depois aquele carimbo naquele documento, e assim por diante, mas também de uma abordagem qualitativa, pois o carimbo errado no derradeiro documento ou mesmo em um documento intermediário ou marginal, quando observado retrospectivamente, no decorrer, por exemplo, de uma revisão ou reanálise, e tudo é reanalisado e revisado incontáveis vezes, pode anular todo o processo, e ai daquele que não observar não só a ordem, mas a coisa como um todo, em seus mínimos e excruciantes detalhes. A anulação de um processo pode levar à suspensão do(a) pleiteador(a), ou seja, ele(a) só terá como tentar outra vez dali a alguns meses ou anos, a depender do erro cometido, se apenas grave ou muito grave (todos os erros são tidos como graves), pois são muitos processos (dizem eles) (o governo, as repartições, aqueles que carimbam), e não há tempo para lidar com relapsos(as), e muitos(as) não têm condições de esperar, não têm quaisquer outras alternativas, e perdem sua chance, perdem tudo, e dali a pouco estão pelas ruas. (Tem um trocado, patrãozinho?) Caso julguem que o(a) pleiteador(a) agiu de má-fé (embora não consiga imaginar uma situação em que a pessoa entre de propósito numa enrascada dessas, pois os impostos e taxas continuam a ser cobrados normalmente, esteja a empresa como estiver, aberta, em processo de baixa, dissolvida ou o quê), ele(a) pode ser expulso(a) da junta comercial, perder o crédito e, em casos extremos, ser preso(a) e até mesmo executado(a). Claro que não foi isso que aconteceu com o meu primo. Ele era um sujeito consciencioso, ciente do que estava em jogo, e passou vários dias correndo de um lado para o outro, cartório, contador, cartório, junta comercial, cartório, pegando assinaturas dos futuros ex-sócios, os quais também queriam abrir novas empresas e, para tanto, precisavam lidar com as pendências da antiga empresa, da qual meu primo era o sócio majoritário, e a baixa era, claro, a pendência derradeira, o ponto final burocrático que permitiria a todos eles seguirem em frente (ou para um dos lados), e então o meu primo corria daqui para lá, incansável e preocupado, reclamando de dores de cabeça e noites insones, reclamando que os futuros ex-sócios deixaram tudo nas costas dele, mas pelo menos vinham arcando com as taxas, dividindo-as igualmente, pelo menos isso, ele dizia após se atirar no sofá ao final de mais um dia, pelo menos isso, e de todo modo (também dizia) não falta muito (não sei que espécie de novo empreendimento meu primo tinha em mente, o que faria a seguir, vencidas todas as pendências, mas creio que tinha algo a ver com segurança informacional, pois o governo vinha prometendo um enorme investimento nesse tipo de coisa. Seu empreendimento anterior, que dera muito certo por um tempo, mas depois degringolara, era uma fábrica de leite condensado cujo principal cliente eram as Forças Armadas. Por razões que nunca compreendi, e que meu primo nunca se deu ao trabalho de me explicar, as compras foram suspensas de repente, e meu primo e os sócios ficaram com as mãos abanando e uma penca de custos operacionais), não falta quase nada, mais esse documento e estamos conversados. No dia em que se deu a fatalidade, faltava apenas o carimbo em um derradeiro documento (que, na verdade, era um documento intermediário, marginal, mas importante) (todos os documentos são importantes, todos os carimbos são importantes, a ordem dos documentos e carimbos (reitero) pode colocar tudo a perder se não for observada, e essa ordem (reitero) não é cronológica, o formulário 4a não deve ser entregue após o 3d, mas após a entrega do 7c e a aprovação do 8b (entregue, por sua vez, após o 2c), e este é apenas um exemplo bobo dos emaranhados burocráticos em que as pessoas precisam se meter), documento que, assinado por meu primo e pelos futuros ex-sócios, com firmas reconhecidas em cartório, seria levado pelo contador à junta comercial, onde a empresa seria dissolvida (não sei se o termo correto é esse) (a palavra sempre me remete à imagem de um cadáver que precisa desaparecer, que não pode ser encontrado, dois pés flutuando num barril repleto de alguma substância ácida ou corrosiva), e todos os envolvidos estariam livres para se amarrar a alguma outra coisa, fim de papo.

2.
O contador era um velhinho mirrado e simpático, de mãos artríticas e voz fina, cujo escritório funcionava em um sobrado em Guarulhos, no bairro do Macedo. Meu primo correu até lá (no dia em que se deu a fatalidade), mal acreditando que a coisa estava próxima do fim (e não imaginando o que estava próximo do fim). Foi recebido no térreo pela secretária, uma mulher grandalhona, ex-militar (fardada na foto sobre a mesa, segurando um fuzil bullpup), sempre exibindo um sorriso esquisito que não era acompanhado pelos olhos, o rosto impassível exceto por aquele rasgo muito branco com moldura vermelha (adorava batons de um vermelho bem escuro). Era a décima segunda vez que ele aparecia por ali nas últimas semanas, sempre trazendo consigo um pedaço de papel dos mais importantes, e a secretária, sorrindo com os olhos fixos na tela do computador, disse: O senhor pode deixar o documento comigo.
E o meu primo, ansioso: Desculpe, mas posso entregar em mãos?
Por quê? Recebo documentos o tempo inteiro.
Eu sei.
Meu trabalho é receber documentos. O senhor sabe disso.
Sim, eu sei.
Veio aqui tantas vezes.
Eu vim.
Deixou tantos documentos.
Deixei mesmo.
Não recebi todos os documentos que o senhor trouxe até hoje?
Sim, mas…
Faço outras coisas, um monte de outras coisas, mas recebo documentos o tempo inteiro.
Que bom.
Bom? Não, não é bom nem ruim. É só um dos meus trabalhos. Uma das minhas funções. Tenho várias funções, e receber documentos é uma delas.
Entendi.
O senhor sabe disso.
Verdade. Eu sei.
Essa pilha aí no canto da mesa? Documentos que recebi hoje.
É que eu…
O quê?
Esse aqui é o último. Queria entregar em mãos.
Isso é incomum.
Se não for possível, eu entendo. Ele é um homem ocupado. Mas eu ficaria muito feliz.
Ela o encarou. Feliz?
Sim, senhora. Feliz.
Feliz, ela repetiu e, sustentando o sorriso, pegou o telefone, apertou uma tecla, resmungou alguma coisa ininteligível com os olhos grudados no meu primo, ouviu, anuiu, recolocou o telefone no gancho e: Ok, senhor Feliz. Ele está com outro cliente, mas pode subir.
Vencido o lance de escadas, meu primo se deparou com uma menina bochechuda de quatro ou cinco anos, cabelos pretos curtinhos, nariz escorrendo, camiseta branca, largas calças verde-oliva e surrados coturnos pretos, uma soldadinha solitária, parada no corredor. Oi, disse ele.
Ela não respondeu.
Boa tarde, insistiu.
Ela não respondeu.
Ele suspirou e fez menção de seguir adiante, mas percebeu o coturno esquerdo desamarrado. Você também veio trazer um documento?
Só então é que a menina o encarou, boquiaberta, expressão entediada, como se contemplasse um completo idiota. Não, né.
Ele sorriu, satisfeito. Posso amarrar seu cadarço? Desse jeito você vai levar um tombo.
Como ela encolhesse os ombros, ele se abaixou e amarrou o cadarço.
Prontinho.
Foi quando um sujeito muito alto e forte, cabeça raspada, saiu do escritório do contador e estancou à frente do meu primo, narizes a meio palmo um do outro: Que diabo o senhor acaba de fazer?
Hein?
Que diabo o senhor fez com a minha filha?
Nada, eu…
Nada?
Nada. Ela só… eu…
Tava aí abaixado, todo esquisitão.
… o cadarço e…
Que porra é essa?
Meu primo deu dois passos para trás.
O pequeno vulto do contador assomou à porta do escritório, braços cruzados.
Que diabo o senhor fez?
Responda à pergunta dele, disse o contador com sua voz fininha.
Meu primo pigarreou. Se recuasse mais, rolaria pela escada. Os olhos lacrimejavam. Não conseguia ver direito os rostos do sujeito e do contador, contra a luz, a janela do escritório escancarada.
O que o senhor fez?, repetiu o contador, a voz ainda mais fina dessa vez, denotando uma irritação crescente.
O que o senhor fez?
Eu… bom, eu… eu amarrei os cadarços dela e…
Os dois?, perdigotou o sujeito.
Só o da direita, disse a menina, a mesma voz entediada, apontando com os dois indicadores para o pé esquerdo. Estava parada no mesmo lugar, escorada na parede. O outro não tava desamarrado, não.
Por que o senhor fez uma coisa dessas?
Eu… mas… o senhor é o pai dela?
Chamei a menina de minha filha, não chamei?
Sim, é… pois é, eu… ouvi, eu… fiquei com medo dela…
O senhor ficou com medo dela?
Não, eu… medo que ela trop… tropeçasse e caísse e…
Tropeçasse no quê?
No cadarço. No cadarço desamarrado.
O sujeito olhou para os pés da filha, depois voltou a encarar meu primo e abriu um sorrisinho: Os cadarços dela estão amarradinhos.
Os cadarços dela estão amarradinhos, disse o contador, ainda parado à porta, a voz mais fina do que nunca.
Mas não… não estavam, ela… um deles não estava e… ela falou, o senhor… o senhor não ouviu? Ela falou.
Falou o quê?
Falou que… que um dos cadarços estava desamarrado.
Qual?
… qual?
É, porra. Qual?
Ué, o…, pigarreou outra vez, piscando os olhos bem rápido. O cadarço do pé esquerdo.
Não!, berrou a menina, abrindo os braços, e em seguida apontou de novo para o pé esquerdo com os dois indicadores: Era o do direito.
Tá vendo?, vociferou o sujeito.
Meu primo abriu um sorriso sem graça: Mas, olha, ela… ela está apontando pro pé esquerdo.
O quê?
As mãozinhas dela. Os dedinhos.
Que história é essa de mãozinha e dedinho?, disse o contador; tinha acendido um cigarro.
Que história é essa de mãozinha e dedinho?, ecoou o sujeito.
Nada, eu só… ela apontou pro… o senhor não viu?
Não vi o quê?
Ela apontou pro pé esquerdo.
Hein?
Ela… ela falou direito, mas apontou pro… pro pé esquerdo.
O senhor está dizendo que a minha filha não sabe diferenciar o pé esquerdo do pé direito?
Bom, parece que… isso é bem comum, acho.
O contador deu uma risada curta, nervosa, e repetiu como se falasse sozinho: Comum.
O sujeito parecia confuso. Comum? O que é comum? O senhor está falando do quê?
Isso de… diferenciar. Ela é pequena… é comum, não é?
Ah. Então ela não sabe. É isso que o senhor está dizendo?
Sim, eu… sim. É, sim. Quer dizer, não. Ela não sabe.
O contador jogou o cigarro no chão e caminhou resoluto até onde estavam os outros dois homens. Não diga uma coisa dessas. Não diga uma coisa dessas!
É, concordou o sujeito, cruzando os braços, a voz repentina e estranhamente afável. Não diga uma coisa dessas.
Eu não quis…
Dedo em riste, o ruído de um caco de vidro riscando a lataria de um carro: Não diga uma coisa dessas!
Mas a q… a questão… a questão é que um dos cadarços dela estava desamarrado, ela mesma disse isso, não disse?, e eu… e eu amarrei pra evitar um acidente e… imagina só, ela… ela…
Ela o quê?, perguntou o sujeito.
… ela caindo… caindo aqui pela escada e podia… podia se machuc
O contador deu um passo para trás, horrorizado.
Agora, a expressão do sujeito era de extrema desolação, parecia prestes a cair no choro. Eu não acredito numa coisa dessas.
O senhor não tem vergonha?
O senhor está ameaçando a minha filha.
O senhor ameaçou a filha dele.
Jogar uma criança escada abaixo.
O contador apontou para a menina (que, a essa altura, estava sentada no chão, as costas contra a parede, e observava uma fileira de formigas passando por ali): Uma criança.
Uma criança.
Lágrimas de terror escorriam pelo rosto do contador. O senhor não tem vergonha?
Onde já se viu?
Onde já se viu?, disse a secretária, que subira as escadas em silêncio e estava parada às costas do meu primo, segurando um taser. O senhor passou dos limites.
Não, não, eu só disse q
O senhor não nos deixa outra escolha, disse o contador, esfregando os olhos, exausto. O senhor não nos deixa escolha.

3.
Quando meu primo acordou, estava descalço (os mocassins e as meias jogados num canto), sentado a uma mesa de madeira, as mãos amarradas sobre o tampo, palmas viradas para baixo. Urina escorrera pelas pernas em algum momento. Era uma sala espaçosa, azulejada, as janelas fechadas com tábuas que alguém, por alguma razão, pintara de branco. No teto, fraca, a única luz acesa. Estavam todos ali dentro, incluindo a menina que, sentada num canto, ao lado dos mocassins e das meias, comia uma carambola. Havia uma enorme caixa de ferramentas aberta sobre a mesa.
O senhor não nos deu alternativa, disse o contador, sentado em uma cadeira junto à porta fechada. Seu comportamento é inaceitável.
A gente pode começar?, perguntou a secretária.
O contador fez que sim com a cabeça.
Nariz destroçado a socos. Dois dentes extraídos com um alicate. Um dos olhos furados com uma chave de fenda. Quando começaram a arrancar as unhas da mão direita, meu primo evacuou nas calças.
Aqui tá fedendo um bocado agora, disse a menina.
O contador se levantou, abriu a porta e voltou a se sentar.
Era com essa mão que o senhor ia empurrar a minha filha da escada?, perguntou o sujeito depois de arrancar a unha do anular. Era?
(Não: meu primo era canhoto.)
Arrancadas as unhas, o contador sugeriu que arriassem as calças e cortassem fora o pau ou martelassem o saco, ou cortassem fora o saco e o pau e obrigassem meu primo a engolir tudo: Acho que isso eu mesmo consigo fazer, disse, animado. Cortar tudo fora. Minha faca taí na caixa.
A secretária se virou, os olhos arregalados, fazendo um tremendo esforço para se controlar: Desculpe, mas o senhor enlouqueceu?
Não somos animais, disse o sujeito, tão enojado quanto a mulher.
O contador cruzou os braços, magoadíssimo. Foi só uma sugestão. Nada demais.
O sujeito desamarrou as mãos do meu primo e arrastou a cadeira até a parede, um rastro de sangue, mijo e merda pelo chão. A secretária contornou a mesa e se abaixou e martelou os peitos dos pés e alguns dedos. Entre um berro de dor e outro, meu primo vomitou.
Filho da puta, ela resmungou, levantando-se. Vomitou nos meus braços, olha.
Tem uma toalha na caixa.
Acho que ele está pronto, disse o contador.
Eu preciso é de um banho.
Acabar logo com isso, então.
Sim, sim, sim, disse o contador. Ele está pronto, eu já disse.
Ofegantes, a secretária e o sujeito jogaram meu primo no chão e, depois de desferir meia dúzia de pontapés nas pernas e costas, arrastaram o corpo meio desfalecido para fora da sala, que ficava no térreo, ao lado da cozinha, arrastaram-no pelo corredor, atravessaram a recepção, a garagem, e, chegando à calçada, depois de descansar um pouquinho, trataram de enforcá-lo na árvore defronte ao sobrado. Usaram um dos cadarços da menina.
Não tinha muitas árvores no bairro, comentou o contador, observando o corpo se debater. Antigamente, eu quero dizer. Mas plantaram um monte uns anos atrás, e agora temos muitas árvores. Isso não é ótimo?
O corpo ficou dependurado por nove dias. Fiz o possível para agilizar o processo de deposição, transporte e descarte, mas sempre faltava um documento, um carimbo, não tenho experiência com essas burocracias, e essa parte foi um autêntico pesadelo. Seria pior se ainda tivéssemos cachorros soltos na cidade; os pássaros, em todo caso, fizeram a festa. Por fim, a solicitação foi aprovada e a ordem de serviço, emitida. No dia em que os lixeiros apareceram, a menina brincava sozinha na outra calçada. Boquiaberta, nariz escorrendo, mas agora descalça, ela atravessou correndo a rua e perguntou a um dos lixeiros se podia ter o cadarço de volta.