Dando continuidade ao Canto anterior, seguimos com Eleonora, e “ela se consumia num clima britânico”: o casamento com Henrique II se deteriorou com o tempo, e ela chegou a ser aprisionada por mais de quinze anos (1173-1189), primeiro no Castelo de Chinon, depois em Salisbury e outros lugares, por ter se aliado aos filhos Henrique, o Jovem, Ricardo Coração de Leão e Godofredo em uma rebelião contra o rei, contando, inclusive, com o apoio de seu ex-marido, o rei francês Luís VII.
Este Canto retoma e reitera diversas expressões e elementos de Cantos anteriores, como as referências a Helena de Troia, à cegueira de Homero etc. Uma observação: Trajano Vieira traduz Έλέναυς, ‘έλανδρος, ‘έλέπτολις (termos novamente citados neste Canto) como “enleia-nau”, “enleia-herói” e “enleia-pólis” (em Agamemnôn, 689-90. São Paulo: Perspectiva, 2017). Bela solução.
“Si pulvis nullus erit (…) excute”: “Et si nullus erit pulvis, tamen excute nullum”, “se não houver poeira, abane do mesmo jeito” (Ars amatoria I: 151). Como se vê por essa citação, Ovídio estava mergulhado na vida cotidiana e criava poesia a partir de detalhes e observações de sua própria experiência, sem recorrer à mitologia. No caso, o poeta instrui o leitor sobre como seduzir uma dama no teatro: sente-se ao lado e, como quem não quer nada, com a desculpa de que há um pouco de poeira no colo dela, use as mãos para “limpar” a sujeira.
“… e li mestiers ecoutes”, “e escute os mestres”. Pound continua “incorporando” a voz de Ovídio.
“… mas sempre uma cena”: à diferença das crônicas, que apresentavam os eventos de forma cronológica, há exemplos na literatura medieval em que uma cena isolada é abordada e evocada em termos visuais, como em Bertran de Born.
“… y cavals armatz”, “e os cavalos de armadura” (Bertran de Born, “Bem platz lo gais temps de pascor”, “Muito me agrada o doce tempo da Páscoa”).
“Un peu moisi (…) baromètre”: Pound pinça algumas frases do quarto parágrafo de “Um Coração Simples”, de Flaubert, e os reordena de tal forma a sintetizar um período histórico.
“A imensa cabeça em abóbada”: aqui começa o retrato de Henry James como o grande e metódico modelo literário — “fantasma em lentidão”, “tragando o tom das coisas”, “tecendo uma frase sem fim”.
“,,, con gli occhi onesti e tardi”, “com olhos dignos e austeros”: variação sobre duas passagens da Comédia — 1) Inferno IV, 112/13: “gentes aí, de tardos, graves / olhares”; 2) Purgatório VI, 61-63: “Chamamo-la; ó lombarda alma sincera, / como estavas altiva e sobranceira / e, no mover dos olhos, digna e austera!”.
“Grave incessu”, “andar solene”. Variação da Eneida I, 45: “et uera incessu patuit dea”, “Deusa no porte, perfeita” (em que Virgílio descreve Afrodite).
“… visitas fantasmagóricas”: possível alusão a uma visita que Pound fez em 1919 ao apartamento de Margaret Cravens, uma amiga americana e sua primeira patrona, e que cometeu suicídio em junho de 1912.
“Ione” é Ione de Forest, nome artístico da dançarina Jeanne Heyse ou Joan Hayes. Pound assistiu a uma apresentação dela em Os Ritos de Elêusis, de Aleister Crowley. Ela se matou em agosto de 1912. Pound escreveu “Dance Figure” e “Ione dead the Long Year” em homenagem a ela.
Liu Ch’e é o imperador Wu-Ti (156-87 a.C.), da dinastia Han. Ele escreveu uma célebre elegia para Li Furen, sua concubina. Ele também visitava os aposentos da amada para sentir sua presença, o que reafirma um dos temas deste Canto — a persistência da memória.
O Elysée, no caso, é o Hotel Elysées, em Paris, próximo de onde ficava o apartamento de Margaret.
“Erard”: um piano projetado pelo prestigioso Sébastien Érard. Cravens, pianista bem-sucedida e rica, possuía um.
“… em ‘tempo'”: outra alusão ao conto já citado de Flaubert, que Pound usa para evocar o apartamento de Cravens.
“… garrafas de cerveja aos pés da estátua”: no caso, uma estátua no Jardim de Luxemburgo. O escritor holandês Fritz René Vanderpyl (1876-1965), citado em seguida pelo prenome, morava perto do Jardim.
“Smaragdos, chrysolitos”, “esmeraldas, topázios”: citação das Elegias (livro II, XVI, 43-46), o trecho em que Propércio lamenta o gosto de Cynthia pelo luxo.
Vasco da Gama (1469-1524), nosso velho conhecido, o explorador português que descobriu a rota marítima para a Índia. Herói dos Lusíadas, onde Camões o descreve (no Canto II, estrofes 97-98) assim:
(…)
Vestido o Gama vem ao modo Hispano,
Mas Francesa era a roupa que vestia,
De cetim da Adriática Veneza
Carmesi, cor que a gente tanto preza:
De botões douro as mangas vêm tomadas,
Onde o Sol reluzindo a vista cega;
As calças soldadescas recamadas
Do metal, que Fortuna a tantos nega,
E com pontas do mesmo delicadas
Os golpes do gibão ajunta e achega;
Ao Itálico modo a áurea espada;
Pluma na gorra, um pouco declinada.
Pound apreciava a qualidade “prosaica” dos Lusíadas, que, para ele, era melhor do que um romance histórico.
“E ‘Montanhas do mar concebem tropas'”: Pound parodia o estilo bombástico de Camões, para ele um sintoma da decadência portuguesa.
“Le vieux commode en acajou”, “a velha cômoda [ou baú] de mogno”.
“A cortina escarlate”: nova referência à tradução de Arthur Golding das Metamorfoses (X, 595-96), à passagem em que Atalanta corre.
“Luz de lampião em Buovilla”: diz-se que Arnaut apaixonou-se pela esposa de Guillem de Bouvila, mas não conseguiu seduzi-la. Pound o imagina com a dama em um quarto, vendo os contornos de seu corpo através das roupas, contra a luz, tal como Hipômenes fez com Atalanta. O trecho “e quel remir” (“para que eu possa contemplá-la”) é de um verso de “Doutz brais e critz”, de Arnaut.
Niceia era uma ninfa devota de Ártemis. Estuprada por Dionísio, matou-se depois de dar à luz. Logo, seu destino ecoa os destinos de outras personagens citadas no Canto, como Ione.
“O voi che siete in piccioletta barca”: Dante, Paraíso II, 1-6. Na tradução de Ítalo Eugênio Mauro (ed. 34):
Ó vós que em pequenina barca estais,
e o lenho meu que canta e vai, ansiados
de podê-lo escutar, acompanhais,
voltai aos nossos portos costumados,
não vos meteis no mar em que, presumo,
perdendo-me estaríeis extraviados
Dido, rainha de Cartago e personagem muito importante na Eneida. Siqueu foi seu primeiro amor e marido, assassinado pelo irmão dela, Pigmalião, rei de Tiro. Ela recebe Eneias, sobrevivente e, por assim dizer, náufrago da Guerra de Troia, e se apaixona por ele ao ouvi-lo narrar a destruição da cidade. Quando Eneias parte rumo à Itália, Dido se mata. No Canto, Pound sugere uma situação distinta, em que a antiga paixão não é substituída pela nova (e destrutiva), mas é, ela própria, destrutiva. Em seu bilhete de suicida, Ione culpou o ex-marido.
“O homem vivo, longe de terras e prisões, / agita os casulos secos”: ao escrever esses versos, Pound tinha o poeta e nacionalista irlandês Desmond Fitzgerald (1890-1947) em mente. Seria uma espécie de novo Lorenzino, que se sacrifica em nome da causa republicana.
Após repetir pequenos fragmentos de Varchi relativos ao assassinato de Alessandro de Médici por Lorenzino, Pound nos sai com um “E biondo”. Trata-se de uma possível alusão a Obizzo II d’Este (1247-1293), Duque de Ferrara, colocado por Dante no Inferno, em um rio de sangue reservado aos tiranos. Ali, um de seus companheiros é Ezzelino da Romano, irmão de Cunizza. Obizzo foi assassinado pelo próprio filho, a exemplo de Alessandro, isto é, que também foi morto por um membro da própria família.