Granada

Conto originalmente publicado na Pessoa em 14.12.2019.

 

Murder would also be suicide.
— William H. Gass, Omensetter’s Luck.

 

Bruno viu como o tio a empurrou escada abaixo, viu o movimento ligeiro do antebraço contra as costas da mulher, viu o ombro esquerdo se pronunciando à frente em uma coreografia similar à do zagueiro faltoso ao deslocar de forma desinteligente o atacante adversário diante de uma bola alçada na área e dos olhos incrédulos dos circundantes, uma clara penalidade, embora ali, naquela parte do navio e àquela hora do dia, não houvesse — não devesse haver — quaisquer testemunhas. Vindo pelo corredor, as mãos enfiadas nos bolsos da jaqueta jeans, pensando na revista em quadrinhos que ia buscar na cabine, Bruno também viu os braços da tia se abrindo e ouviu o grito curto e agudo e algo infantil, e então o corpo dela desapareceu como se engolido por um alçapão.
Óbvio que o tio jamais imaginaria que Bruno estava logo ali, doze passos atrás, pois deixara o menino lá em cima, no convés, jogando conversa fora com Otto, a paciência do sujeito era mesmo ilimitada, horas ouvindo sobre filmes e enlatados e histórias em quadrinhos, sentia até uma certa pena e chegara a pedir a Bruno que desse um tempo, não precisa passar o dia inteiro grudado no infeliz, por que não arranja outra coisa pra fazer? Pouco antes de empurrar a esposa, enquanto se aproximavam do lance de escadas, olhou para trás a fim de se certificar de que estavam mesmo sozinhos, de que o momento era aquele, agora ou nunca, tão nervoso quanto no dia em que a pedira em casamento (afastou essa lembrança o mais rápido que pôde), e Bruno ainda não havia apontado no outro extremo do corredor, o lugar deserto e silencioso, repleto daquela fantasmagoria que talvez tenha tornado a decisão e o gesto mais fáceis. Após o empurrão, ficou parado por alguns segundos no topo da escada, olhando para o corpo que se debatia contra o metal, os mesmos segundos durante os quais Bruno, tendo visto o que vira, testemunhado a coisa, hesitou entre correr para acudir a tia e dar meia-volta. Por fim, olhos arregalados e coração aos pulos, ele optou por dar o fora e, em questão de instantes, estava trancado em um banheiro, trêmulo e sem a menor ideia do que faria a seguir. Ali ficou por quinze minutos, com medo de que o tio soubesse, com medo de que ele o tivesse visto e agora estivesse em seu encalço, pronto para também empurrá-lo do alto da escada, estrangulá-lo com os cadarços ou atirá-lo no mar. Quando se acalmou um pouco e conseguiu sair, olhou ao redor e não percebeu nenhuma movimentação suspeita ou anormal, nenhuma agitação, nenhum alarme, nenhuma correria. Respirou fundo, reuniu alguma coragem e retornou ao local do empurrão. Ninguém. Subiu, então, ao convés. Tranquilíssimo, o oceano ignorava todo aquele drama. Bruno sentiu uma súbita vontade de xingar o mar, cuspir nele.
— Ei! Onde você se meteu?
Olhou para Otto, parado à sua direita com as mãos para trás feito um padre ou alguém algemado, e tentou dizer alguma coisa. Não conseguiu. A tontura que sentiu ao gaguejar diante do amigo não era um enjoo qualquer, mas como se o navio não tocasse mais as águas do oceano, suspenso por uma mão gigantesca que, a qualquer momento, fosse virá-lo de cabeça para baixo, e todos morreriam afogados. Quando deu por si, estava sentado em uma espreguiçadeira, Otto agachado à sua frente com uma expressão preocupada no rosto, que diabo está acontecendo com você, garoto?
— Eu… ele, meu… ela foi e…
— Você está se sentindo mal? Vou chamar o médico.
— Não, eu… espera.
Bruno se afeiçoara a Otto desde o primeiro dia do cruzeiro, quando toparam ali mesmo no convés e jogaram conversa fora por um bom tempo, o menino atraído pelo porte do sujeito, um norte-americano de cara comprida e ombros largos, cabelos cortados à escovinha e um rosto que parecia incapaz de esboçar um sorrisinho que fosse.
— Nossos cabelos são iguais — Bruno comentou naquele dia. — O senhor é soldado?
A princípio, Otto tentou se desviar da saraivada de perguntas que se seguiu à resposta (fui um marine), desvencilhar-se do menino, não embarcara naquele navio para ficar de conversa fiada com um moleque de oito anos, queria apenas ser deixado em paz e espairecer por uns dias antes de voltar à terra firme e decidir o que faria da vida, mas havia algo no brasileirinho, algo que ele provocava, uma certa identificação, talvez, eu não era um pouco assim quando criança? Falastrão, carente, curioso? Lembrou-se do dia em que o pai voltara manquitolando da Coreia e, depois de mostrar as medalhas (Coração Púrpura, Estrela de Prata), sentou-se à mesa da cozinha, encheu um copo com leite até a borda e, diante dos olhares da mulher e do único filho, abriu um sorriso e disse que poucas coisas são tão boas quanto um copo cheio de leite bem gelado, não é mesmo? Depois de beber tudo em três ou quatro goles, ele ignorou as perguntas de Otto, dizendo que não falaria sobre a porcaria da guerra, pediu à mulher que, se possível, fizesse costeletas para o jantar e desandou a falar dos Cardinals — este, sim, um tópico aceitável, dos poucos que discutiria com o filho sempre que possível e até o fim da vida.
— Você está branco — disse Otto, a mão no ombro direito de Bruno. — Sua pressão baixou? Está enjoado?
O menino concordou com a cabeça. — Eu… tudo bem, já estou melhorando.
— O que aconteceu?
— Minha tia, ela… ela… um tombo e…
— Tombo? — havia certas palavras cuja sonoridade arredondada Otto apreciava bastante, mesmo após seis anos e meio no Brasil, e adorava repeti-las. — Ela levou um tombo?
— É, ela…
— Onde?
— Na escada, indo… perto das cabines ali… embaixo, ela…
Correram para a enfermaria. O tio não disfarçou a surpresa com a chegada repentina dos dois: — Como é que vocês?…
— Como ela está? — Otto perguntou. — E o bebê?
Encarou o sobrinho, que desviou os olhos para o chão. — Estão cuidando dela. Acho que quebrou um braço e… mas o bebê, ele…
Bruno levantou os olhos.
O tio forçou um sorriso. — Parece que foi só um susto e… está tudo bem com o bebê.
— Graças a Deus.
— Sim, foi bem…
— Ela caiu da escada?
— Caiu. Tropeçou e caiu.
— Nossa, eu…
— Pois é.
— Essas escadas são traiçoeiras.
— Nem me fale.
— E é um milagre que ela não tenha se machucado mais e…
— Sim, sim, um milagre. Escuta, Otto. Você se importa de ficar com o Bruno até… até a gente… eu não sei quanto tempo e…
— Claro. Sem problemas.
— … eu não sei quando é a gente vai sair daqui. Ela deve ficar em observação.
— Não se preocupe. Eu fico com ele.
Foram para a cabine de Otto, que fazia o possível para animá-lo, viu só? Um susto, mais nada. Agora vamos relaxar um pouco. Mas, sentado na cama, Bruno começou a chorar. Como explicar o que vira? Era uma coisa muito séria, muito grave. Criminosa. Otto tinha sido um soldado, e soldados prendiam ou matavam criminosos. Era para isso que serviam. Mas Otto não era um soldado brasileiro. Otto nem era mais soldado, na verdade. Ex-soldados americanos podiam prender criminosos brasileiros? Talvez nos Estados Unidos. E talvez ali onde estavam. No mar. As leis são diferentes no mar? Otto tinha lutado em uma guerra, e o pai de Otto tinha lutado em outra guerra. Será que o avô de Otto também lutou em uma guerra ainda mais antiga? E o filho de Otto, lutaria em alguma guerra no futuro? Otto não tinha filhos, mas poderia ter, pois era casado. Ou não, porque a mulher dele tinha ido embora. Mas ele podia se casar outra vez, com outra mulher. Não era isso que o pai ia fazer? Mas como falar a respeito do que vira? Otto entenderia? E se estivesse enganado? E se o movimento do tio fosse outro, não de empurrar a tia, mas de perceber que ela se desequilibrara e tentar segurá-la, impedir a queda? Sentado a uma cadeira ao pé da cama, Otto ignorava o choro de Bruno, queria dar espaço para o amigo e sabia muito bem que não havia nada que pudesse fazer ou dizer. Olhava, distraído, para a janelinha acima da cama, bebendo bourbon do cantil metálico que sempre levava no bolso interno do paletó. Bruno achava impressionante que ele bebesse tanto e, exceto pela fala um pouco mais arrastada e pela vermelhidão do rosto, continuasse mais ou menos do mesmo jeito. O tio se transformava. Os pais se transformavam. Todo adulto que ele conhecia virava outra pessoa depois de três ou quatro doses. Todo mundo, exceto Otto. Talvez porque fosse um ex-soldado.
— Vai ficar tudo bem — Otto disse, afinal. — Sua tia, o bebê. Todo mundo. Tudo muito bem. Você vai ver.
Bruno fez que sim com a cabeça, com veemência, não porque concordasse com o amigo, mas para espantar o choro de uma vez por todas. Esfregou os olhos e se recostou na parede, as pernas esticadas sobre o colchão, pés suspensos. Olhou para a mala aberta à direita, colada à cabeceira da cama. Dentro dela, a pequena bolsa preta. Otto abrira a mala quando entraram na cabine, guardara alguma coisa lá dentro, em meio às roupas, mas se esquecera de fechá-la.
— Não tem perigo dela explodir?
— Hein? Ah. Não, não. Fica tranquilo. Perigo nenhum. Zero perigo. Palavra.
— Por que você…
Otto bebeu mais um gole e olhou para o menino. — O que você gosta de fazer quando está em casa?
— Ver televisão.
— Televisão. Televisão é bom. Distrai. O que você gosta de ver?
Spectreman.
— Aquele seriado japonês?
— É. Também gosto do Tarzan.
— Tarzan é bom. Eu lia as histórias quando tinha a sua idade. Lia bastante, via bastante televisão. Meu pai estava sempre fora. Minha mãe também.
— Por quê? Por causa do trabalho?
— Meu pai, sim, meu pai era vendedor, do tipo que viaja muito. Depois que voltou do exército. Acho que ele não aguentava ficar parado num só lugar. Precisava ficar em movimento, sabe? Indo de um lado pro outro, de cidade em cidade. Ele se gabava de conhecer o país inteiro. Ele dizia: fala o nome de uma cidade. Eu falava e ele descrevia como era, onde ficava, como chegar lá, tudo isso. Era incrível.
— Meu pai também viaja muito.
— Sim, sim, você comentou. Minha mãe era enfermeira e trabalhava bastante, também. Às vezes, ela trabalhava a noite inteira.
— E quem cuidava de você?
— Ah, sempre tinha alguém. Minhas primas mais velhas, alguma vizinha. Sempre tinha alguém. Minha mãe pagava, sabe como é, e alguém ficava comigo. E depois o tempo passou e eu fiquei grandinho, não precisava mais disso.
— Minha mãe só trabalha em casa.
— Deve ser uma coisa boa.
— O quê?
— Ter a mãe por perto.
Bruno encolheu os ombros.
— Bom. Olha só. Eu tenho um plano. Você quer ouvir o meu plano?
— Quero.
— Vou tomar banho. Por que você não vai lá na sua cabine e toma um banho também? Daí a gente sobe junto pra jantar.
— Esse é o plano?
— Esse é o plano.
Bruno encolheu os ombros outra vez. — Pode ser.
— E tem a segunda parte do plano: depois do jantar, a gente visita a sua tia.
— Pode ser.
— Daqui a uma hora?
— Pode ser.
— Te espero aqui, então.
Ele ficou alguns minutos no corredor. Deixara a porta apenas encostada ao sair, sem que Otto percebesse. Calculou quanto tempo o amigo levaria para tirar a roupa, dar uma cagada, ligar o chuveiro. Esperou por cinco minutos, e só então readentrou a cabine. No banheiro, o som do chuveiro aberto. Calculara certo. Foi até a mala e pegou a bolsinha. Abriu o zíper. Uma pistola, dois pentes de munição e a granada. Na noite anterior, um Otto completamente bêbado mostrara como fazer. Mesmo que ele não tivesse feito isso, Bruno achava que não haveria problema. Vira incontáveis vezes na televisão. Claro que, se Otto não tivesse mostrado, ele não saberia que ali dentro daquela bolsinha havia uma granada. Como é que deixavam Otto andar por aí com uma coisa dessas? Ele não era mais soldado. Mas ali estavam: a granada na mão e o modo de usar gravado na cabeça. Otto fora muito didático. Está vendo isso aqui? É o pino. Você puxa ele assim, ó. Está vendo? Eu vou tirar e depois colocar outra vez. Não precisa ficar com medo, não vai explodir. Olha. Você tira o pino desse jeito. Presta atenção. Daí espera um pouquinho, uns dois segundos, joga na direção do inimigo e se protege. Bum. Agora deixa eu colocar isso de volta. Isso. Viu? Sem problema. Me passa a garrafa, por favor? Como era mesmo a palavra que ele usara? Estilhaços. Sim, Otto explicara, você já viu filmes de guerra? As pessoas morrem por causa dos estilhaços. A granada explode e vira um milhão de estilhaços. E os inimigos morrem. Quem estiver perto morre. Melhor não ficar perto. Melhor se proteger. Porque a granada explode, bum, os estilhaços voam, rasgando tudo, e fim de papo.
— Fim de papo — Bruno repetiu agora. Guardou a granada no bolso da jaqueta, depois fechou a bolsinha e a recolocou na mala. No banheiro, Otto tossiu uma, duas, três vezes. A garrafinha não estava à vista. Será que ele bebia até debaixo do chuveiro? Saiu da cabine com o coração apertado, mas Otto era ex-soldado, não seria difícil arranjar outra granada.
Andando com pressa pelo corredor, cabisbaixo, lembrou-se dele e do tio conversando dias antes, os quatro à beira da piscina. Bruno achava engraçado isso de ter uma piscina dentro de um navio, com aquele tanto de água ao redor. Questão de segurança? E também não seria possível o navio parar a todo momento para que as pessoas pudessem nadar, jamais chegariam a lugar nenhum se fizessem isso. O tio perguntava há quantos anos Otto vivia no Brasil e que tal era trabalhar no consulado. É tranquilo, Otto dizia, tranquilo até demais, mas não posso reclamar. O que você faz lá? Fico atrás de uma mesa, mexendo com papelada o dia inteiro. Bruno gostava de imaginar que Otto era um espião, mas o americano rira ao ouvi-lo sugerir algo nesse sentido. Era melhor quando estavam só os dois. O tio era muito, muito chato, mas não incomodava Otto com muitas perguntas porque preferia falar sobre si mesmo, sobre quando estudara na Inglaterra e depois na Alemanha, você não faz ideia do quanto é difícil a vida de professor no Brasil, meu caro, eu devia era ter dado um jeito de continuar na Europa. Mas, claro, aqui e ali pipocavam algumas perguntas de forma meio desinteressada. Não, Otto não sabia nada de filosofia. Não, Otto nunca pensou em retomar os estudos, fazer um doutorado ou coisa parecida, aquilo simplesmente não era para ele. Não, a mulher de Otto também não sabia nada de filosofia, ela era tradutora (francês, português) e tinha voltado para o Missouri meses antes, no final de abril, pouco depois do enterro do presidente. Não, Otto não sabia quando voltaria para os Estados Unidos, talvez em breve, talvez só dali a uns anos, era complicado e não dependia só dele. Sim, Otto gostava da vida e do trabalho no Rio, gostava do clima e das pessoas. Sim, Otto estivera no Vietnã. Embora tentasse disfarçar, o tio ficou incomodado quando Otto perguntou para quando era o bebê. Ainda faltam mais de três meses, a tia respondeu com um sorriso. Ele percebeu que havia algo de errado e não fez mais perguntas a respeito, nem mesmo dias depois, quando tomou aquele porre com o tio durante o jantar.
A verdade era que havia mesmo algo de errado, como demonstravam as discussões cada vez piores entre o tio e a tia. Piranha!, Bruno ouvira o tio berrar poucos dias antes do embarque. Queria voltar para casa, mas a tia explicou que ainda não seria possível, talvez no comecinho de janeiro, seu pai está viajando e a sua mãe tem umas coisinhas pra resolver, quem é que vai cuidar de você lá em Brasília?
— E a gente vai passar o réveillon no mar — a tia emendou, arregalando os olhos, procurando transmitir uma excitação que não estava lá. Era péssima atriz, mas Bruno gostava dela. Gostava de saber que se esforçava, pelo menos. Era mais do que a mãe vinha fazendo nos últimos tempos, depois que as viagens do pai se tornaram mais frequentes. — Não é o máximo?
— É. Acho que sim.
Certa noite, o tio chegou a socá-la na barriga. Bruno viu a tia caída no chão, aos prantos, encolhida. Acordara no meio da noite com a discussão, ela implorando, para, para com isso, por favor, você está bêbado, e ele:
— Quem, desgraçada? Quem?
Chegou à sala no momento em que o tio desferia o soco. Não conseguiu conter um berro, ao que o homem se virou e ordenou, apontando para o corredor escuro: — Volta pro quarto. Agora.
Não saberia dizer se a coisa terminou por ali, pois se trancou no quarto e meteu a cabeça debaixo do travesseiro. Não queria ouvir mais nada. Não aguentaria ouvir mais nada. Queria ir embora. Mas: tios, pais. Não tinha para onde ir. Não tinha para onde correr.
— E a gente vai passar o réveillon no mar.
Na manhã seguinte à noite do soco, o tio estava sozinho à mesa do café. Pediu desculpas pelo ocorrido, às vezes eu perco a cabeça, mas essas mulheres, elas põem a gente louco, sabia? — Vai saber quando for mais velho. Vai saber direitinho. Vai sentir na pele. Quer uma torrada?
— Cadê a tia?
— Descansando. A gente embarca depois de amanhã. Você já viajou de barco? Pode ser cansativo. Ela precisa descansar. Mas está tudo bem. Não esquenta a cabeça, tá bom?
Não houve resposta.
O tio levou a mão ao bolso da camisa, pegou e colocou três notas sobre a mesa, tapando-as em seguida; Bruno não conseguiu ver quantos mil cruzeiros eram. — Olha só. Me faz um favor? Não comenta sobre o que você viu ontem com o meu irmão.
— Eu nem sei onde o meu pai está.
— Nem com a sua mãe, tá? Aquilo foi um acidente. Um acidente, só isso. Não comenta nada. Com ninguém.
Ele pegou o dinheiro, mas só não disse nada porque não conseguiu falar com a mãe antes de embarcar. Mas talvez não comentasse mesmo se falasse com ela. Como explicar uma coisa daquelas?
Mantendo a mão direita no bolso da jaqueta, caminhou até a cabine que ocupava com os tios. Entrou sem bater porque imaginava que não haveria ninguém, mas lá estava o tio estirado na cama de casal, descalço, olhando para o teto, lata de cerveja encaixada na mão. As solas dos pés estavam meio sujas. Bruno contou nove latinhas espalhadas pelo chão. Vazias, amassadas. O homem não sorriu ao ver o sobrinho.
— Como… — pigarreou. — Como é que a tia está?
— Ela vai ficar bem — a voz alquebrada, os olhos ocos. Sua expressão desolada parecia comunicar uma má notícia.  — Ela vai passar a noite sob observação.
— Que bom — os lábios de Bruno esboçaram um sorriso, mas não foram acompanhados pelo restante do rosto.
— Daqui a pouco eu volto pra lá. Ela não está falando coisa com coisa, mas o médico disse que isso é normal. Quer ir comigo?
— Pode ser — o arremedo de sorriso desaparecera. Bruno desviou os olhos para o lado.
— Que foi?
— Acho que esqueci a minha carteira na cabine do Otto. Vou lá correndo buscar.
— Não demora. Vou descansar só mais uns minutinhos.
— Não vou demorar, não.
Bruno saiu da cabine e parou no meio do corredor. Olhou para a esquerda, depois para a direita. Ninguém. Sozinho. Tirou a granada do bolso. Notou que estava tranquilo. Respiração normal, coração calminho. Olhou para a granada na palma da mão esquerda. Com as mãos firmes, sem hesitar, tirou o pino, virou-se, abriu a porta da cabine, jogou a granada lá dentro, fechou a porta e correu na direção da escada, a voz de Otto ecoando na cabeça:
— Melhor não ficar perto. Melhor se proteger.

………

Imagem: Hugo Simberg, Dança com a Morte (1899).