Necessidades

Um conto.

Cagar. O homem está sozinho, sentado à mesa, fuçando no telefone. Ele precisa cagar. O gabinete meio às escuras. Precisa muito cagar. Janelas e cortinas fechadas. Outra vez isso. Luzes apagadas, exceto por um abajur. Ele não aguenta mais. A noite avança lá fora. Cagar, por que é tão difícil cagar? Berros distantes, buzinaços. Os médicos disseram que. Panelas batendo? O que os médicos disseram? Sim, panelas, estão dizendo nas redes. Ora, o que os médicos sabem?
Canalhas, resmunga.
Mas ele precisa cagar. Mesmo. De verdade. De uma vez por todas. Deitar a mãe de todas as cagadas. Uma cagada-monstro. Uma cagada-brasil. Uma cagada-mundo. Uma cagada-china. Uma cagada escatológica. Ele não conhece várias dessas palavras. A única coisa que ele conhece é a necessidade/impossibilidade de cagar. Ele precisa cagar. Um pouco que seja. Um nada que seja. Bolinhas redondas e escuras, ressecadas. Merda de coelho. Qualquer merda. É isso, ou o fim. Acabar em merda. Soterrado pela própria merda. Não: entupido com a própria merda. Isso precisa ter um fim. Isso precisa terminar, findar, chegar. Acabar.
(Acabou, porra!)
Evacuar. Defecar. Bostar. Descomer. Obrar. Estercar. Borrar. Dejetar. Aliviar(-se). Sujar. Soltar um barro. Estrumar. Adubar. Bostejar.
Precisa, mas não consegue.
Sim, outra vez isso.
Tenta se distrair, respirar melhor. Mas é impossível se distrair, é impossível respirar melhor. Assim como está. Atulhado de merda. Merda, bosta, estrume, cocô. Tenta se distrair. Mas pensar em quê? Nos cavalos? É, nos cavalos. No gado. Até nos cachorros. Os bichos fazem parecer tão fácil. O cavalo que montou daquela vez, em plena Esplanada, cagando sem maiores problemas. Cagando em Brasília. Eu cavalgo, você caga. E se alguém me. Não. Impossível. Ninguém pode cavalgá-lo. Eu cavalgo, eu cago. Ele tem um exército. O meu exército caga, eu não cago. Todos os cavalos cagam. Todos os bois e vacas, todos os ministros, senadores, deputados, todos os juízes, até as porras dos juízes, até a porra daquele ex-juiz, todo mundo caga. Menos eu. Eu não cago. Eu tento e. Não. Negativo. Aquele cachorro que o dono veio buscar. Zeus. Não. Zeus, não. Zeus, porra nenhuma. Augusto. Augusto caga. As emas lá fora cagam. Todos os bichos, a mulher, a filha. Cagando, todo mundo cagando direito. Os canalhas ao redor da praça, nos outros prédios e gabinetes. Todo mundo caga. Até os bostas desses jornalistas. Cagando entre uma mentira e outra. Cagando enquanto mentem. E as porras dos índios lá no acampamento. Sim, os índios também cagam. Ele viu os banheiros químicos instalados. Pra que tanto conforto? Os putos não precisam disso. Vivem no mato. Cagam no mato. Todos cagam, por que eu. Não. Cagar dia sim, dia não: um sonho.
Preciso cagar, eu.
Sozinho, à mesa. Mexendo no celular. A respiração descompensada. Berros, buzinaços. Panelas.
Canalhas.
O lugar às escuras, exceto por um abajur e pela luz do visor. Meio azulada, a claridade distingue o rosto — azula a palidez acentuada. Aqueles índios ainda estão lá fora? Eles não vão embora? Cagando nos banheiros químicos. Por que não cagam no tribunal? A gente devia ter começado por eles, mas.
Cagões.
Enquanto mexe no celular, saltando de uma rede à outra, de um grupo a outro, sente dor. E sente raiva. Há quantos dias não caga? Não é possível. Não, não, não. A coisa mais simples que existe. Mais simples que comer. Isso é desumano, porra. É sacanagem. Tão querendo me matar. Isso lá é jeito de morrer? A barriga dura, a cabeça como que socada num torno. A dor se espalha pelo corpo inteiro. Desumano. Às vezes, tem a impressão de que os olhos vão saltar das órbitas, os dentes trincando e estourando, a cabeça em pedaços após a explosão final, sangue e miolos e. E merda. A cabeça do sujeito estourando num filme que viu outro dia. Um filme velho. As pessoas cagavam no filme? As pessoas cagam em todo lugar. As pessoas cagam nas novelas, as pessoas cagam em casa, as pessoas cagam no trabalho, os índios cagam no mato e nos banheiros químicos, os ministros cagam no tribunal e em mim.
Em mim!
Todo mundo caga, o tempo todo. As pessoas cagam sem parar. Cagam e cagam e cagam. Cagar é a coisa mais simples que existe, mas eu.
Senhor?
Não viu o bosta do assessor entrar. Está ali parado, no meio do gabinete. Nervoso. Na penumbra. As mãos dele na reunião horas antes. As mãos lavadas e perfumadas de quem passou pelo banheiro. Cagando depois do almoço. A coisa mais simples que existe. Cagou depois do almoço e agora está falando. Falando, falando. Senhor isso, senhor aquilo. Eles isso, eles aquilo. Eles quem? Eles também cagam. É, porra, todo mundo caga. O tempo todo. Opta por não dizer nada, o bostinha que fale sozinho. E ele fala. O lacaio fala sem parar. Nervoso, ali parado. Voz nervosa, mãos nervosas. Mãos lavadas e perfumadas. Mãos de quem cagou, mãos de quem ainda vai cagar mais, mãos de quem caga sempre que precisa, sem problemas, sem complicações, sem nada que. A coisa mais fácil. O que ele está dizendo?
As estradas, senhor, elas…
Volta a se concentrar no telefone. Que fale sozinho. Apaziguar os ânimos, convocar as lideranças, desescalar a coisa um pouco, só um pouquinho, até que possam repensar a. O quê? Estratégia? Precisa de uma estratégia pra cagar, isso sim. Dois generais, dois filhos e três ministros na sala vizinha, à espera. Falando merda. Todo mundo só fala merda. Todo mundo caga e todo mundo só fala merda. Na sala vizinha, em todo lugar.
Senhor, eles acham que…
Ele deixa o celular sobre a mesa com um gesto brusco, depois leva a mão à barriga. Por que essa merda tá acontecendo comigo? A garganta seca, as palmas suadas das mãos, um princípio de cãibra na panturrilha esquerda. Precisa de água. Precisa se deitar um pouco. Precisa cagar. Precisa dizer alguma coisa. Precisa tirar uma soneca, dar um pulo no quartinho e. Precisa falar com alguém. Não com esse lacaio de merda. Com um dos filhos, talvez. Mas o que o filho vai dizer? Dormir. O contrário do que diz o assessor. Dormir e não sonhar com nada. É agora ou nunca. Tantos pesadelos. Não dá mais pra recuar. No escuro. Já estão te chamando de frouxo por aí. Breu. Frouxo?
Frouxo, resmunga, a cabeça pendendo no escuro, como se tivesse caído no sono de repente, sem mais nem menos (dormir, não tem conseguido dormir muito, dormir e cagar, e se acontecer de cagar enquanto dorme?, cagar enquanto dorme, sujar a cama, sujar os lençóis, não a mulher, a mulher não dorme mais com ele, dorme noutro quarto, cagar enquanto dorme é melhor do que não cagar, qualquer coisa é melhor do que não cagar, eu quero, eu preciso, eu).
Senhor?
Hein? Ah. Nada.
Nada? Sim, nada. Não tem porra nenhuma aqui, pensa, pegando de novo o celular. Porra nenhuma. A porra dum deserto. O que as porras dos índios querem no meio desse deserto? A gente devia ter começado por eles. A gente devia ter começado melhor. A gente devia ter começado pra valer. A gente devia ter começado pior. Mas ainda tem como. Ainda tem por onde. Terminar o que começou. Ele só quer terminar o que começou, mas como? Não. Nem isso. Ele só quer cagar. Melhor não falar com ninguém. Esperar mais um pouco. Um pulinho no banheiro. Quem sabe consiga. Alguma coisa precisa sair. Qualquer tanto. Um pouquinho que seja. Não é possível que não tenha competência nem mesmo pra. Frouxo? Você aí, pensa ao ler a mensagem de algum filho da puta, pedindo, exigindo, implorando, tudo ao mesmo tempo. É, você. Canalha. Tenta fazer o que eu faço com o bucho entupido de bosta. Tenta, vai. Não é fácil, não, tá me entendendo? Porra. A coisa mais fácil do mundo. Cagar na cabeça dos ilustres magistrados. A coisa mais difícil. Todas aquelas palavras difíceis. Esticaram a corda. Meu filho, ele. A corda da descarga. Que se atrevam. Aquelas privadas antigas. Melhor nem pensar nisso. Uma cordinha junto à caixa, era cagar e se limpar e puxar. Melhor nem pensar em nada. Uma olhadinha antes. Por um tempo. Lá vai.
Tchau.
Senhor?
Hein? Ah. Nada.
Nada. Frouxo? Na semana anterior, era corno. Uma história circulando. Traído? Comia gente sempre que. Eu, eu comia. Metia no cu das vadias. Dei casa praquela ingrata. Meter no cu é simples, mas o pau precisa estar bem duro ou fica dobrando. Dei tudo, porra. Como endurecer o pau com esse bucho entupido de bosta? Ajudei todo mundo e é isso que eu ganho. Não dá pra pensar em mais nada. Traído por todos. Pelos outros. Frouxos são vocês. Meter no cu desses frouxos. Meter no cu de todo mundo antes que metam no meu. Não é uma boa ideia meter no meu cu, tô avisando, hein. Melhor procurar outro cu pra meter. Aqui? Traíras. Aqui, não. Canalhas. Eu ainda tô aqui. Eu não vou a lugar nenhum. Só saio daqui depois de cagar. Só saio daqui morto.
Eu ainda tô aqui.
Senhor?
Encara o assessor. Na penumbra. Mãos lavadas, perfumadas. Cagou hoje, né? Parabéns. Aposto que dá o cu. Largo. Viado. Não. Não tem nenhum viado aqui, não. Viado caga pra dentro. Pra dentro e pra fora. Viado caga. Todo mundo caga. Que se foda. Olhos no celular, volta a circular pelas redes e grupos. O assessor desiste, deixa o gabinete. Sozinho de novo. Trespassado pela dor. Intestinos. Os olhos ardendo, fixos no visor. E as polícias? Linhas cruzadas, conversas atravessadas. Todo mundo enlouquecido. Todo mundo batendo cabeça. Caos. Precisa de um gesto salvador. Messias. Motociata, motocada. Outro ultimato, quem sabe? Mais firme. Frouxo. Não sou frouxo, não, porra. Vocês é que são.
Vocês é que são, cambada de filho da puta.
Senhor?
Não viu o general entrar. O general e mais ninguém. Nem sinal dos filhos. Melhor assim. Não quer vê-los agora. Nenhum deles. O general está falando alguma coisa. Todo mundo está falando alguma coisa. Melhor não ouvir. Mas talvez devesse. Talvez precise. Precisa de tantas coisas. Não. Só precisa de uma coisa. Precisa cagar. Precisa cagar o quanto antes. A coisa mais simples do mundo. Não consegue pensar direito. O general está falando. Que fale sozinho. Se conseguisse cagar, talvez conseguisse ouvir. E pensar. Cagar direito, pensar direito. Ouvir. Merda até nos ouvidos? Faria tudo melhor. Faria tudo pior. Sem vacilos. Vacilões são eles. Sim. Todos eles. Todos, todos eles, os que cagam direito. Vacilões. Canalhas. Filhos da puta.
Desgraçados.
Senhor?
Ele solta um berro e atira o celular na parede.
O general se cala, as mãos para trás. Não parece surpreso ou intimidado.
Ele se vira após um momento, os olhos injetados, a respiração descompensada, e vocifera: Aqui não tem corno, não!
O general sorri, compreensivo, e deixa o gabinete sem dizer mais nada. O gabinete meio às escuras. Janelas e cortinas fechadas. Luzes apagadas, exceto por um abajur. Não aguenta mais isso. Precisa falar com alguém. Não quer falar com ninguém. Precisa fazer alguma coisa. Lá fora, na rua, algo explode. Qualquer coisa. Gritaria. Precisa fazer qualquer merda. Gritaria interminável. Ele precisa ligar pra alguém. O celular espatifado, ele precisa. Não. Cagar. Ele precisa cagar.

……

Imagem: Richard Hambleton, Shadow Head (óleo sobre tela, 2017).