Contra a tirania

Artigo publicado hoje n’O Popular.

tirania

A Tirania dos Especialistas, lançado em fins de 2019 pela Civilização Brasileira, é mais do que uma mera reunião de artigos ou ensaios de Martim Vasques da Cunha. Autor do incontornável A Poeira da Glória, o filósofo político explicita o eixo reflexivo que seguirá desde a escolha e a organização dos textos que integram o volume. Noções e conceitos indispensáveis para a compreensão desse percurso são paulatinamente apresentados e explicados ao leitor, que logo se familiariza com pensadores tão díspares quanto Michael Oakeshott, Paulo Arantes, Daniele Giglioli, René Girard e Christopher Lasch. O clímax da coisa se dá no ensaio mais longo do volume, “As Ruínas Circulares”, em que o autor eviscera e expõe as ideias e o projeto totalitário daquele que “educa” a casta de “anti-indivíduos” que infestam a noite bolsonarista — Olavo de Carvalho.

A Tirania dos Especialistas aborda a traição da democracia por uma elite adoecida que tomou de assalto parcelas do poder (cultural, midiático, acadêmico, político etc.) e contaminou muitos de nós com uma espécie de sífilis filosófica. Tomados por um delírio crescente, passamos a ver o mundo não como ele é, mas como gostaríamos que fosse; institui-se “uma verdadeira revolta contra a própria estrutura da realidade”.

Vasques da Cunha identifica os sintomas desse adoecimento recorrendo a conceitos-chave para melhor caracterizá-los. Assim, entre muitos outros, temos Giglioli e o “mecanismo que regula hoje todas as relações (…): o de apresentar a vítima como ‘o herói do nosso tempo’”, a “ilusão tecnocrática” devassada por William Easterly (ilusão que é responsável direta pelo estabelecimento da tirania referida pelo título da obra), a “pleonexia” conforme Eric Voegelin (“o desejo de poder, misturado ao desejo de conhecimento, que faz o filósofo cair na ilusão de que, por meio de suas ideias, pode transformar a Terra em uma ‘casa bem-arrumada’”), o “naufrágio espiritual” segundo Mark Lilla (o ato intelectual de estreitar “o curso de um rio em um único afluente”, preocupando-se “somente com as ruínas de um passado inexistente, mas que (…) influenciará um futuro inatingível”) e o “novo tempo do mundo” de Paulo Eduardo Arantes, cujo “apocalipse político” preconiza uma “aceleração”, um “deslocamento de um ‘horizonte de expectativa’ (…) para nada mais, nada menos que a súbita insurgência de uma ‘Grande Revolução’”.

Entre projetos totalitários e/ou apocalípticos, à esquerda e à direita, em meio às ruínas do velho tempo do mundo, no gradativo isolamento da democracia “em suas próprias entranhas”, na prisão da “Segunda Realidade” e nas tentativas malfadadas de controlar a História ou mesmo de prostituí-la, salta aos olhos a incapacidade dos “intelectuais de gabinete” de “aceitar as coisas como são” e “admitir a verdadeira tragédia do nosso tempo: a de que estamos abandonados, sem guia para nos orientar”.

O “especialista” distorce e sevicia a realidade para melhor adequá-la ao seu projeto de poder, desprezando a individualidade e as necessidades concretas do outro. Temos, por tudo isso, de reconhecer o conteúdo trágico intrínseco a qualquer decisão política e agir de acordo, isto é, responsavelmente. Temos de evitar a destruição do “homem em função de uma humanidade abstrata que jamais existiu”, exceto nas “mentes descoladas da realidade” de gente como Ruy Fausto, Mark Lilla, Enzo Traverso e Arantes.

Olavo de Carvalho não é diferente deles, pois “quer substituir essa elite que perverteu a casta do espírito por uma outra”, ou seja, quer trocar “seis por meia dúzia”. Grosso modo, a corrupção de uns e outros é da mesma espécie: todos querem o trono no reino da pleonexia, todos ignoram que, “numa sociedade livre, o conhecimento só pode existir se for caótico, desorganizado, fragmentado e disperso, chegando a alguma coerência somente por meio de um processo decisório que venha ‘de baixo para cima’, jamais por meio de uma casta específica” — seja ela qual for.