Resenha publicada em 07.02.2015 no Estadão.
Em “O incolor Tsukuru Tazaki e seus snos de peregrinação”, encontramos várias das características que tornaram Haruki Murakami um romancista tão bem-sucedido. Estão nele o tom de fábula, os ecos surreais, a inserção de diferentes níveis ou planos existenciais e o cuidado quase didático para com a estruturação. Emulando uma composição do húngaro Franz Liszt (1811-1886) intitulada justamente “Os anos de peregrinação”, o romancista japonês lança o seu protagonista numa jornada de autodescoberta que, embora não surpreenda pela originalidade, é bem amarrada e desenvolvida.
Tsukuru Tazaki é um engenheiro de 36 anos, especializado em projetar e reformar estações de trem. Leva uma vida insossa em Tóquio, casa-trabalho-casa, cujo único atrativo é Sara, uma mulher com quem está envolvido e que percebe nele um trauma, algo que o estaria travando e que talvez ele devesse destrinchar. Não é preciso cavoucar muito. Quando jovem, em Nagoia, ele integrava um grupo de amigos. Cada um deles (exceto o “incolor” Tsukuru) tinha uma cor no sobrenome: os garotos Akamatsu (“pinheiro vermelho”) e Ômi (“mar azul”), e as meninas Shirane (“raiz branca”) e Kurono (“campo preto”). Certo dia, quando Tsukuru já morava em Tóquio como estudante, ele foi súbita e secamente cortado do grupo. O choque foi tamanho que ele nem sequer procurou saber o motivo. Agora, 16 anos depois e instigado por Sara, ele decide procurá-los a fim de descobrir o que se passou.
A jornada de descoberta é, como se disse acima, uma jornada de autodescoberta. Sujeito ordinário, que sempre se considerou sem atrativos e sem graça, Tsukuru se vê entregue a uma busca não só pelos fatos, por aquilo que teria levado os amigos a expulsá-lo de sua convivência, mas pela própria identidade, por algo que lhe confira alguma cor, um traço distintivo que ressalte a sua singularidade.
Talvez resida nessa dimensão em que se dá a busca incessante pela própria identidade, a partir de nós mesmos e por meio do outro, a razão do sucesso do autor. Qualquer leitor se enxerga nisso, em maior ou menor grau. É comum que nos sintamos “incolores” em algum momento da vida. Portanto, Murakami sempre reflete sentimentos comuns, compartilhados por todos, nas suas “mini-odisseias”, cujos deslocamentos, interiores e exteriores, são também facilmente reconhecíveis por nós.
Graças a esse aspecto de forte interesse humano, é possível não se incomodar com a prosa às vezes simplória do autor. Construções e metáforas que normalmente soariam canhestras (“O passado começava a se misturar silenciosamente ao tempo real, que corria aqui e agora. Como a fumaça, que penetra no quarto sorrateiramente através de uma pequena fresta da porta.”) adquirem uma honestidade inesperada, e o romance captura a atenção do leitor sem maiores dificuldades.
Outro aspecto que torna “O incolor Tsukuru Tazaki e seus snos de peregrinação” um bom livro tem a ver com o seu desfecho. Com inteligência, Murakami evita arredondar a narrativa com uma conclusão artificial ou mesmo catártica. Em vez disso, opta por sugerir que a peregrinação prosseguirá, agora com um pouco mais de autoconsciência por parte de Tsukuru. É o tipo de coisa que impede o barateamento da jornada empreendida e, ao mesmo tempo, demonstra respeito pelo leitor.