Distopia cotidiana

Resenha publicada em 20.09.2014 no Estadão.

sperling

Ao contrário do que em geral acontece, há uma verdade na orelha do livro de contos Um Homem Burro Morreu: “O escritor Rafael Sperling é sem noção”. A falta de noção não é um problema, mas o combustível que alimenta os 27 contos (mais um epílogo) deste que é o segundo livro do autor carioca de 29 anos. As histórias primam pelo absurdo, pela escatologia, pelo nonsense e por uma capacidade imaginativa impressionante.

O conto de abertura, por exemplo, é um pastiche do pseudojornalismo especializado em perseguir celebridades e “noticiar” seus mínimos movimentos. Em Caetano Veloso se Prepara Para Atravessar Uma Rua do Leblon, o sujeito, de fato, atravessa uma rua, vai a um restaurante, come, usa o banheiro do lugar e por aí afora, sempre acompanhado por uma voz onipresente que lhe faz perguntas inócuas como as de um apresentador de talk-show (“Como você se sente após ter atravessado a rua, Caetano Veloso?” “Eu estou muito feliz”).

Em Insônia, um menino fantasia sobre espancar os coleguinhas para chamar a atenção de uma menina enquanto, no quarto ao lado, seus pais mantém uma ruidosa relação sexual. A convergência dessas duas ações resultará numa ocorrência grotesca e numa mudança de atitude por parte do menino. A ironia não está no acúmulo delirante de absurdos, mas na “normalidade” que insiste em se instalar desde o tom da narração.

Assim, uma simples ida à padaria (em Eu Queria Comprar Pão) resulta numa briga violenta, uma criança fala sobre o quanto aprecia as histórias picantes contadas pela babá (“Eu gosto de sexo, embora tenha apenas 3 anos. Eu nunca fiz, mas sei como é o sexo. Já vi na internet”, em Eu Gosto das Histórias Que a Minha Babá Conta) e um casal que se ama demais não consegue fazer mais nada além de chorar: “No dia seguinte fomos direto para a nossa lua de mel, em Cancún, e passamos uma semana inteira deitados na cama do hotel, chorando, olhando nos olhos um do outro” (em Emoção).

Sperling também recorre a reimaginações hilariantemente brutais de contos de fadas (em A Branca de Neve Era Um Tanto Bonita), faz com que Jesus Cristo trucide Adolf Hitler com uma violência tremenda e que se pretende reconfortante (em Jesus Cristo Espancando Hitler), narra Um Dia Comum na Vida de Dante Alighieri (o qual se dá num lar sórdido e envolve assassinatos e canibalismo) e lança mão de uma Fábula Kafkiana, que inicia com o escritor checo “em casa, trabalhando, sentindo-se um inseto imundo, quando seu pai frio e opressor aparece”, e o que se desenrola a partir daí é um pesadelo em que o sujeito é anulado pela perversidade alheia.

Ancorado no deserto sombrio que nasce e cresce entre as pessoas, o humor escandaloso de Um Homem Burro Morreu não é, em si mesmo, gratuito, mas refere-se à gratuidade que frequentemente resume as relações humanas. Com isso, Rafael Sperling ilustra muito bem a distopia nossa de cada dia.