Há uma passagem de Altos voos e quedas livres em que o escritor inglês Julian Barnes, falando sobre a “perda de profundidade” inerente ao luto, aborda o seu aspecto, por assim dizer, contingenciador: a pessoa morta “não existe realmente no presente, e não inteiramente no passado, mas num tempo de verbo intermediário, o passado-presente”. A sombra que esse tempo intermediário lança sobre o futuro é dolorosíssima, pois é esvaziada, ou igual a uma ausência tremenda. Os três textos que compõem o livro são um testemunho não apenas do luto (a esposa de Barnes, Pat Kavanagh, morreu em 2008, após mais de três décadas de convivência), mas da possibilidade, ou não, de se pensar e escrever a esse respeito.
O autor não ataca o tema diretamente. O primeiro texto, “O pecado da altura”, introduz alguns personagens reais (o inventor francês Félix Tournachon, o oficial britânico Fred Burnaby e a atriz francesa Sarah Bernhardt), que “eram os tipos de adeptos do balonismo na época (segunda metade do século XIX): o entusiasmado amador inglês (…) disposto a subir em qualquer coisa que voasse; a mais famosa atriz de sua época, fazendo um voo célebre; e o balonista profissional”. Logo fica claro que o balonismo é uma metáfora para algo maior e mais obscuro, “uma liberdade subserviente aos poderes do vento e do clima”, uma vez que o “pecado da altura é castigado”. Quase que de passagem, somos informados da vida conjugal de Tournachon e sua esposa Ernestine, que “sempre esteve lá”. No fim, ele cuidou dela, entrevada por um derrame. Barnes parece olhar para cima a fim de enxergar melhor o que temos ao nível do chão. Se o amor nos eleva, seu fim é algo como uma aterrissagem quase sempre brutal.
Seguimos com Bernhardt e Burnaby no segundo texto (o mais próximo de um conto), “No nível do chão”. É a história de amor vivida por eles, breve e ao mesmo tempo longa, interminável, sobretudo para Burnaby. Quando estava com ela, a exemplo do que sentia ao voar, “ele podia ouvir a si mesmo vivendo”. Uma coisa ilumina a outra, oferece imagens, subsídios narrativos e discursivos, e a justaposição de elementos assim díspares é muito bem sacada: a rarefação do voo é ligada à do amor, e a esta se segue, no desenvolvimento do próprio livro, a rarefação da perda.
Na parte final, “A perda da profundidade”, Barnes se volta para o achatamento propiciado pelo luto. Não é apenas a descrição de um “processo” (e ele se volta contra o uso dessa e de outras palavras e expressões eufemísticas ou apenas estúpidas, como a de que teria “perdido a esposa para o câncer”) ou de uma “nova geografia, mapeada por uma nova cartografia”, mas um mergulho ou descida à individualidade mais plena e intransferível, pois, segundo as palavras de E. M. Forster, “Uma morte pode explicar a si mesma, mas ela não lança nenhuma luz sobre outra morte”. O luto não pode ser compartilhado nem mesmo entre dois enlutados, pois suas respectivas experiências são incomunicáveis. Contudo, a beleza de Altos voos e quedas livres está justamente na tentativa falha, alquebrada, de comunicar algo, por ínfimo que seja, acerca daquele continente vazio, grande demais.
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OBS.: esta resenha saiu no Estadão em 05/04/2014. Como não subiu para o site, resolvi publicá-la aqui na íntegra.