Resenha publicada no Estadão em 27.07.2013.
O norte-americano John Fante (1909-1983) é mais conhecido pelos romances que escreveu protagonizados por seu alter ego Arturo Bandini, sobretudo por aquele que é usualmente referido como a sua obra-prima, Pergunte ao Pó. O recém-lançado A Irmandade da Uva vem chamar a atenção para outros personagens tão marcantes quanto Bandini, os membros da família Molise. Fante se utiliza deles para destrinchar seus temas habituais (pobreza, crises familiares, identidade ítalo-americana, as vicissitudes do próprio trabalho de escritor) com a franqueza, a sentimentalidade – jamais sentimentalismo – e a fluidez que lhe são peculiares.
Originalmente publicado em 1977, A Irmandade da Uva forma com o belo 1933 Foi um Ano Ruim, lançado postumamente (e editado no Brasil pela L&PM), um panorama de várias gerações dos Molise. Em 1933, encontramos Dominic Molise no fim da adolescência, numa cidadezinha do Colorado, lutando contra a pobreza e a insistência de seu pai para que se dedique ao ofício da família, tornando-se pedreiro. Ele, contudo, tem outros planos, e sonha dar o fora dali para tentar a sorte como jogador profissional de beisebol.
O romance, incompleto, termina com Dominic ainda no Colorado após uma tentativa frustrada de ir embora, mas crente de que é apenas uma questão de tempo para debandar rumo à Califórnia.
Em A Irmandade da Uva, nos deparamos com outro ramo da família vivendo na costa oeste, décadas depois do que é contado em 1933. A relação desses Molise com aqueles outros nunca é esclarecida, e isso não importa muito. A sugestão de ramos desgarrados de uma mesma e imensa família vivendo em recantos distintos dos Estados Unidos e talvez ignorantes uns dos outros funciona muito bem nessas histórias em que a desagregação familiar é uma ameaça constante, para não dizer uma realidade incontornável. Além disso, deixa o leitor livre para encarar os livros na ordem que lhe aprouver.
Narrado por Henry, um cinquentão e o único de quatro irmãos que conseguiu deixar a cidadezinha onde nascera e crescera, San Elmo, para uma relativamente bem sucedida carreira como escritor em Los Angeles, A Irmandade da Uva se passa no decorrer de umas poucas semanas em que ele se vê obrigado, por causa de uma suposta crise familiar (mais uma), a voltar para a casa dos pais. O romance é norteado por algumas inversões. Por exemplo: em seu retorno, Henry é levado a trabalhar com o pai idoso, alcoólatra e intratável em um derradeiro serviço de pedreiro, justamente aquilo de que fugira décadas antes.
O pai, Nicholas, é um personagem e tanto, assim descrito por Henry: “Ninguém cruzava com ele sem uma batalha. Desgostava de quase tudo, particularmente da mulher, dos filhos, dos vizinhos, da sua igreja, do padre, da sua cidade, do seu estado, do seu país e do país do qual havia emigrado. Não dava a menor importância ao mundo também, ou ao sol e às estrelas, ou ao universo, ao céu ou ao inferno. Mas gostava de mulheres”.
Ele exibe uma espécie de paternidade em negativo, cuja irascibilidade naufragou ou tentou naufragar os sonhos e aspirações de todos os filhos. Mesmo Henry, a despeito de sua carreira e da distância que conseguiu estabelecer, acaba enredado pela força irresistível do velho, seja pela culpa, seja (o que é ainda mais irônico) pela perspectiva da culpa – ele não quer, depois, ser acometido pelo remorso por não atender ao último desejo do pai e estar com ele em seus dias derradeiros. A carga tragicômica disso é muito bem explorada por Fante.
A culpa é a argamassa das relações familiares, boas ou ruins, e está por todo o livro. Mas, claro, há outras coisas. Por exemplo, a viagem empreendida por pai e filho para as montanhas, a fim de realizar aquele último – e malfadado – serviço. No silêncio do trabalho pesado regado a vinho, muito vinho, dia após dia, num tempo em que “não existem horas”, quebrando e empilhando pedras, eles se aproximam de uma forma inédita. Claro que isso não perdurará. Mas a ideia de uma “morte” em vida, de uma anulação das mágoas e angústias no e pelo trabalho conjunto, é algo que não só reconcilia momentaneamente pai e filho como permite ao velho ter a ilusão de, no fim das contas, ter feito tudo certo. Não fez, é evidente, até porque ninguém faz. O que importa, contudo, é que essa “irmandade” ébria de vinho e trabalho permite aos dois um intervalo pacífico, uma trégua e, por que não?, um reencontro, mesmo que precário, antes da despedida final.