[W.I.P.]

[Trecho pinçado do meu romancemprogresso.]

Aureliano não entendeu metade do que os médicos lhe disseram. Eles foram todos muito educados e falaram um de cada vez, pausada e didaticamente, mas, agora, repassando a coisa toda na cabeça, os rostos e as vozes deles se misturavam e era como se todos falassem ao mesmo tempo e a única coisa que ele conseguia depreender era:
Só vai piorar.
Quando voltou ao quarto para se despedir, Camila olhou para ele com aqueles olhos fundos, adoecidos, como se o encarasse distantemente de uma janela no canto mais escuro da cabeça. Sem querer, ele desviou os olhos dos dela e parou junto ao leito com os braços cruzados, cabisbaixo, uma criança prestes a sofrer uma repreensão. Ela disse que os médicos já tinham passado por ali e conversado com ela a respeito de tudo.
Ótimo, ele tentou sorrir, porque mais tarde, quando eu voltar, você vai ter que me explicar tudinho.
Não é complicado, ela disse.
Mas é grave.
É. Bem grave.
Então, é complicado, sim.
Ela não disse mais nada. Olhou para fora, os prédios do Setor Comercial Sul como que deslizavam em direção ao eixinho: estava zonza. De agora em diante, estaria sempre ou quase sempre zonza.
Você quer um copo d’água?, ele perguntou.
Agora, a voz dele lhe dava ânsia de vômito. Qualquer ruído lhe dava ânsia de vômito. Mesmo balançar a cabeça (não queria um copo d’água) lhe dava ânsia de vômito. Mover a mão em direção ao copo que lhe fosse estendido, alcançá-lo, segurá-lo, trazê-lo à boca, abrir a boca, o contato do copo com os lábios e depois a água lhe preenchendo a boca e descendo pela garganta, os olhos meio fechados enquanto bebia, fechar os olhos e depois abri-los, tudo lhe daria ânsia de vômito, a coisa, o processo todo, ele não percebia isso? Não queria explicar, embora pudesse fazê-lo com uma mísera frase: Estou zonza. Ou, melhor ainda: Enjoada.
Aureliano olhou para ela esparramada no leito, olhos fechados. Era uma mulher grandalhona de vinte e nove anos, de coxas grossas e ancas largas, cintura fina, quase sem barriga, uns seios pequenos e os cabelos pretos muito lisos. O rosto fino, embora bem proporcionado, quase bonito, emprestava-lhe uma tristeza girafídea que nunca esvanecia e tampouco se agravava: era sempre aquela nuvenzinha, um certo embaçamento leve, algo preguiçoso, como se um espirro ou um bocejo estivesse prestes a irromper, sempre, e ela não tivesse forças para completar nem uma coisa, nem outra.
O cansaço de Camila fez com que Aureliano se cansasse de olhar para ela; puxou uma cadeira para junto da cama e sentou-se com as pernas afastadas e cada mão sobre um joelho. O que havia para se ver ali? Voltou a olhar para a esposa, os olhos dela sempre fechados, e pensou: Que desgraça. No momento em que ele pensou isso, uma música orquestral extremamente triste advinda de um programa qualquer que passava na televisão chegou aos ouvidos deles. O volume não estava muito alto, mas fez com que Camila abrisse os olhos e procurasse entender o que ouvia. Não demorou muito para conseguir, e, assim que o fez, abriu um sorriso dolorido.
Que foi?, Aureliano perguntou. Conhece esse troço?
Ela balançou a cabeça: sim, conhecia. O tipo de coisa que ela ouvia, às vezes. Enquanto corrigia provas ou tirava a sesta após o almoço de domingo, deitada no pequeno sofá da sala de estar; sozinha. Continuava sorrindo quando disse:
É o Réquiem de Mozart.
Réquiem?
É. Você sabe. Uma missa fúnebre. Para alguém que já morreu.
Ficou olhando para ela até que o sorriso, aquela sombra carregada de ironia, desaparecesse. Então, perguntou se ela não queria que ele desligasse a televisão.
Tanto faz, ela respondeu. Tanto faz.
Eu tenho que ir agora, ele disse.
Eu sei.
Ele se levantou e a beijou na testa e a ouviu pedindo que tomasse cuidado (Tome cuidado você, ele pensou, mas não disse.) quando já passava pela porta e ganhava o corredor. Assim que as portas do elevador se fecharam, balançou a cabeça de um lado para o outro com violência, como se quisesse expulsar algo qualquer dali de dentro, e tentou imaginar o que o esperava, sem sucesso.