No espaço intolerável da memória

faulkner

Lemos em O Som e a Fúria, de William Faulkner (trad.: Paulo Henriques Britto, ed. Cosac Naify):

“Quando a sombra do caixilho apareceu na cortina era entre sete e oito horas, e portanto eu estava no tempo de novo, ouvindo o relógio. Era o relógio do meu avô, e quando o ganhei de meu pai ele disse Estou lhe dando o mausoléu de toda esperança e todo desejo; é extremamente provável que você o use para lograr o reducto absurdum de toda experiência humana, que será tão pouco adaptado às suas necessidades individuais quanto foi às dele. Dou-lhe este relógio não para que você se lembre do tempo, mas para que você possa esquecê-lo por um momento de vez em quando e não gaste todo seu fôlego tentando conquistá-lo. Porque jamais se ganha batalha alguma, ele disse. Nenhuma batalha sequer é lutada. O campo revela ao homem apenas sua própria loucura e desespero, e a vitória é uma ilusão de filósofos e néscios.” (p. 73)

O relógio parece assumir uma característica uterina: com a sua posse (ou da posse deles, homens, pelo relógio), eles são lançados no tempo e percebem, com uma clareza insuportável, a própria condição, adquirem uma consciência maior, quantificada, da invencibilidade e inexorabilidade do tempo. Ou, formulando um pouquinho melhor, o relógio parece simbolizar tal condição e tal consciência.

(Poderíamos até mesmo brincar com a derradeira frase do parágrafo, substituindo “campo” por “tempo”: “O tempo revela ao homem apenas sua própria loucura e desespero, e a vitória é uma ilusão de filósofos e néscios”.)

Antes, no início do trecho, o narrador descreve seu retorno ao tempo (“e portanto eu estava no tempo de novo”) a partir do momento em que ouve o relógio trabalhando. O objeto comunica a ele a sua condição. Além disso, faz com que ele se lembre da circunstância em que foi presenteado, do que ouviu de seu pai e do que o pai alega ter ouvido do avô. Ao passar de pai para filho para filho, o relógio resume belissimamente o “reducto absurdum de toda experiência humana”.

Temos, por meio de um objeto, do que ele simboliza em geral e, sobretudo, em particular (para o narrador, Quentin), algo que é de fundamental importância para o andamento do romance. Fatos passados, o seu reprocessamento pelo personagem e a decisão que Quentin posteriormente toma tendo em vista todas essas coisas são, de certo modo, sugeridos pela relação dele com o objeto que o lança “no tempo de novo” e, portanto, no espaço intolerável da memória. Quentin precisará ausentar-se.