Fuçando na papelada que abarrota a minha vida, encontro uma pasta com diversas versões de Aneurisma. Ali no meio, um punhado de folhas manuscritas, os primeiros rascunhos dessa que é a coisa que mais me apetece ter escrito até hoje. Aneurisma é uma novela publicada em meu segundo livro, Paz na Terra Entre os Monstros. Abaixo, um trecho do que presumo ser a versão que está no livro (não tenho um exemplar aqui para comparar). Futuramente, se assim me permitirem, pretendo relançá-la em livro-solo.
As imagens são pobres, muito pobres, mas o efeito é atingido. Ou não. De uma forma ou de outra: como se a cabeça se despregasse ou se desprendesse do corpo, caísse e quicasse uma duas três vezes e voltasse invertida para o lugar e assim se reencaixasse.
Ou como se uma marreta acertasse o alto da cabeça.
Ou uma bola de boliche.
Ou não, nada disso.
Assim: ele estava em pé ajeitando uns livros quando desmaiou. Um apagar-se geral, imediato, de todo. Desmontou sobre o tapete da sala, diante da estante que organizava, numa tarde de sexta-feira. Tinha acabado de almoçar, estava sozinho em casa e decidira tentar uma reorganização da estante abarrotada ao procurar em vão por um volume destroçado, de capa arrancada e repleto de anotações nas margens, de O Castelo. Um volume comprado em banca de jornal por uma ninharia e que o acompanhara desde o fim da adolescência. No momento em que terminou de recolocar na estante um exemplar de Vineland, apagou. Vinha, é verdade, sentindo dores de cabeça as quais caracterizava como “engraçadas”. Sentava-se, por exemplo, à mesa para jantar e comentava com ela que Estou com uma dor de cabeça engraçada. Engraçado para ela, no caso, era ele dizer que sentia uma “dor de cabeça engraçada” sem esboçar o menor ou o mais débil sorriso. Tampouco ocorreu a ela pedir a ele que caracterizasse uma “dor de cabeça engraçada”. Nada, pelo visto, que o fizesse rir.
Acordou estatelado no tapete, esvaziado. Nenhuma dor, nenhum pensamento. Como acordar em uma tarde nublada de quarta-feira útil no meio de imerecidas e improvisadas e fatalmente tediosas férias extemporâneas. Levantou-se, foi ao banheiro, enxaguou o rosto e, no quarto, ligou para ela. Acho que desmaiei, foi o que disse, o elmo cheio de quê?
Quando ela chegou, previsivelmente esbaforida e preocupada, tudo o que ele conseguia dizer eram coisas desconexas sobre um exemplar perdido de O Castelo. Ela aludiu às dores de cabeça e ele disse que sim, que a cabeça doía no momento em que apagou, mas a cabeça doía quase que o tempo todo, e que tinha procurado por um velho exemplar de O Castelo sem encontrá-lo, e que por isso resolvera dar uma organizada na estante. Está uma bagunça desgraçada. Você precisa ver.
Ajoelhada diante dele, buscava os seus olhos e só encontrava aquele fiapo de voz e aquelas frases soltas, libérrimas, sobre exemplares perdidos, bagunças desgraçadas e dores de cabeça engraçadas. Nenhuma narrativa coesa, estruturada, racional, sobre o que acontecera. Ele desmaiou. Ele estava arrumando a estante e desmaiou. Tendo acordado, me ligou. Eu vim correndo. Eu estou aqui. Mas e ele? Onde ele se meteu? O que fizeram com ele? Não, ele está aqui. Sentado na cama. Repetindo coisas sobre coisas banais. Não entendo. Ele tampouco parece entender coisa alguma. Bateu com a cabeça? Eu bati com a cabeça? Os olhos dele, ele não me olha nos olhos. Ele sempre me olha nos olhos. Mesmo quando eu não quero, quando eu não preciso, ele me olha nos, direto nos olhos. Mas agora ele foge. Ele não está aqui. Onde ele está? Livros. Ele fala de livros.
Está doendo agora? ela perguntou ainda ajoelhada diante dele, ele ainda sentado na beira da cama. Não sei. Acho que não. Ela suspirou, impaciente. Não sabia o que pensar. E ele: Uma bagunça desgraçada. Pára de falar dessa porra de estante! ela berrou, levantando-se, e saiu do quarto. Voltou em seguida, folheando o Grande Livro Azul do Plano de Saúde. Fez isso por quase dois minutos, até encará-lo completamente perdida: O que é que eu tenho que procurar?
Foi quando ele, mais do que nunca esvaziado, ele sorriu.
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