Excerto de Terra de casas vazias, meu romancemprogresso.
Garoava quando Teresa deixou o prédio. A visão através das lentes dos óculos escuros impossibilitada em questão de segundos, o mundo mais e mais embaçado e disforme. Esperou até que tudo se transformasse em um borrão para só então tirar os óculos e encaixá-los na blusa, junto ao pescoço. Não precisava deles, na verdade. O dia tão escuro. Em seguida, cobriu a cabeça com o capuz, colocou as mãos nos bolsos da blusa de moletom e saiu pela calçada. Uma adolescente cabulando aula, vagabundeando. Dia útil para os outros, não para mim. Seus passos eram incertos, como se tivesse bebido um pouco, e caminhava olhando para o chão, com medo de tropeçar no pavimento cheio de buracos, rachaduras, poças d’água, entulhos. Estava agora a favor do vento, o que não era ruim. O vento investia contra as suas costas e era como se a empurrasse. (Veja: sem raízes aqui.) À sua esquerda, do outro lado da rua, as árvores do parque ainda se dobravam. Lembravam pessoas se alongando antes de correr num dia ensolarado. Evitou olhar para as árvores. A mesma sensação desoladora que tivera ao observá-las pela janela da sala, de que elas migrariam a qualquer momento. Não queria vê-las indo embora. Ou talvez elas apenas se dobrassem até quebrar. (Tudo se dobra e vem ao chão num estrondo, de um jeito ou de outro, mais cedo ou mais tarde.) Não queria vê-las se dobrando até quebrar. Não queria ver nada, mas um trecho menos acidentado da calçada permitiu que levantasse a cabeça. A cidade ao redor como que interditada, ninguém à vista. O cenário desolado de um filme apocalíptico. O mundo acabou: agora, podemos viver. Mas não havia ruínas. Os prédios inteiros se repetindo a distâncias regulares. Brasília, ora essa. Tudo em Brasília se repete a distâncias regulares. Fim do mundo, mas um apocalipse higiênico que extinguisse a vida humana, não as edificações. Os apartamentos todos vazios, como os de um prédio terminado e nunca inaugurado. Silenciosa e tranquila terra de casas vazias. Por alguma razão, isso lhe pareceu justo. Deus estalando os dedos e desaparecendo os seres, mas deixando os prédios intactos: concreto deiforme. Justo e agradável, sim. Glória a Deus nas alturas. . Ao Senhor, que matou o próprio Filho e também o meu. Também o meu. Respirou fundo. Não se sentiu melhor. Qual é a porra do Seu problema? Arrancando os filhos de suas mães. Disseram a ela que não pensasse nisso. Não pensasse nessas coisas. Não pensasse. Todos, sem exceção. Mas, como não? Quando a falta é o que há. Quando tudo se reduz à ausência. Creio Em Deus Pai Todo-Poderoso Criador Do Céu E Da Terra E Em Jesus Cristo Seu Filho Unigênito Nosso Senhor etc. Seu Filho Unigênito. Tenta não pensar nisso, disseram. É difícil, quase impossível. Mas tenta. Para não enlouquecer. Para se recompor. Para seguir em frente. Você e Arthur. Ele precisa de você. Que infantil, ela pensou. Tudo, tudo isso. Do começo ao fim, afora e adentro. Pensar ou não pensar, seguir em frente ou não. Que besteira, que.
Tropeçou.
Uma rachadura na calçada, o tropeço e ela caindo de joelhos, as duas mãos ainda nos bolsos. Soltou um gemido, a boca mal se abrindo. Não deu com a testa no chão por muito pouco. Levantou-se com dificuldade. Dois pequenos rasgos nas calças, os joelhos agora poderiam enxergar o que estivesse à frente. Dois olhos vermelhos bem no meio das pernas. O moletom preto, quase não se percebia. Algumas lágrimas rolaram, poucas. Mais pelo susto. Esperou um pouco, que o tremor nas pernas passasse. Então, seguiu viagem, mais do que nunca concentrada no chão.
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