De uns dias para cá, por motivos que não vem ao caso mencionar aqui, reli e pensei bastante nos contos “Adult World (I)” e “Adult World (II)”, de David Foster Wallace. Eles integram o volume “Breves entrevistas com homens hediondos” (trad.: José Rubens Siqueira, Cia. das Letras), livro que se esbalda e esbalda o leitor com narrativas e metanarrativas — como é o caso de “Adult World (II)” — repletas (claro!) de homens hediondos e “assimetrias emocionais”.
Embora seja meio irregular em seus experimentos metaficcionais, a coletânea apresenta peças primorosas, como os contos que lhe dão título, “Para sempre em cima”, “A pessoa deprimida”, “Sem querer dizer nada”, “Octeto” e os dois “Adult World”, Para o meu gosto, “Oblivion” é o grande livro de contos de DFW, aquele que melhor equilibra estilo e execução (e dor, claro, jamais nos esqueçamos da dor).
Os dois “Adult World” contam uma só história. E essa história é sobre uma jovem senhora muito encanada, as enrascadas em que as pessoas se metem por conta da sua incapacidade de, bem, conversar umas com as outras, as mentiras que contamos para os outros e sobretudo para nós mesmos e, last but not least, o sacro esporte da masturbação. De certa forma, os contos versam sobre imaturidade e sobre como a chegada à maturidade implica, às vezes, como estratégia de sobrevivência, abraçar algum cinismo — e, nesse ponto, há casais que cogitam procriar, pois não têm mais nada a perder.
A jovem senhora muito encanada é a protagonista. Ela meteu na cabeça que tem “alguma coisa errada” consigo e alimenta a impressão de que, ao transar com o maridão, o sexo é “de alguma forma doloroso para o negocinho dele”. (Sempre esboço um sorriso ao ler a palavra “negocinho”.) Essa impressão se acentua em determinadas posições (ela por cima) ou quando coloca “o negocinho dele na boca”, e também porque (salvo por raríssimas e excruciantes exceções) o sujeito só consegue gozar quando fazem papai & mamãe.
O maridão é descrito como um amante muito atencioso e gentil, e ela sempre chega ao orgasmo quando se relacionam — coisa que, obviamente, incrementa a sensação de que está “fazendo alguma coisa errada” que impede o cônjuge “de gozar a vida sexual conjunta tanto quanto ela”. Ela passa a investigar o rosto dele durante o ato, procurando pistas de quaisquer desconfortos, e estranha que, ao boqueteá-lo, ele raramente vai até o final, preferindo interromper o sacro esporte da felação e penetrá-la de novo.
Claro que a mulher começa a se sentir muito, muito mal, como se não merecesse aquele maridão bacana com quem goza e que acende um cigarro para ela no pós-foda. Ela passa a ter pesadelos e pensamentos intrusivos. Sem saber como resolver o suposto problema, vai a um sex shop (Adult World) e compra um pênis de borracha a fim de aprimorar sua técnica de boqueteação e, assim, quem sabe, não machucar o “negocinho” dele. Depois, também compra vídeos pornográficos para estudar as habilidades das atrizes. Ela nota que os atores observam com interesse e aprovação o entra-e-sai oral de seus respectivos “negocinhos”. Ela se pergunta se certo tensionamento abdominal do maridão não seria pelo fato de ele levantar a cabeça para observar o andamento dos trabalhos lá embaixo. Ela começa “a debater consigo mesma se seu cabelo não estaria grande demais para permitir” que ele veja “o negocinho dele entrando e saindo de sua boca”. Sim, ela cogita cortar o cabelo por isso.
Paralelamente, o narrador introduz uns detalhes intrigantes. Por exemplo: como trabalha no mercado financeiro, é comum que o maridão se levante no meio da noite para “conferir a posição do yen” e coisas do tipo. Às vezes, ele sai de casa e vai ao escritório para analisar os mercados asiáticos com “maior profundidade”. Ele também se tranca no “ateliê” junto à garagem de casa, onde “relaxa” por algumas horas “com seu hobby de reforma de mobília” (eu ri alto aqui); óbvio que a porta do “ateliê” fica sempre trancada.
Além disso, somos informados de que ela arruinou “uma relação anterior com sentimentos e medos irracionais”, relação, sentimentos e medos descritos no momento oportuno. O ex é importantíssimo para a “epifania” que a mulher experimenta a certa altura.
Não, não vou parafrasear os contos de cabo a rabo, até porque coisas inesperadas acontecem (toda a história envolvendo o ex é particularmente tragicômica). Mas, para concluir, ressalto dois aspectos que me agradam demais.
O primeiro deles é a forma do segundo conto (que, repito, conclui a história iniciada no primeiro), um esboço repleto de indicações para a escrita propriamente dita do troço, escrita que não se dá: o conto finalizado não está ali, não é apresentado ao leitor. É como se a resolução da crise detalhada no primeiro conto não passasse de um rascunho, de uma possibilidade ainda não efetivada, de uma história ainda por ser devidamente desenvolvida e fixada, de algo que ainda precisa ser narrado para valer. Trechinho:
“2b. Coincidência [N.B.: pesada demais?]: A.A. confessa que ele ainda se masturba secretamente com lembranças do amor que fazia c/ J., às vezes a ponto de ficar esfolado/dolorido. [ —> a “confissão” do A.A. aqui ao mesmo tempo reforça a epifania de J. no tocante à fantasia masculina & fornece a ela mui-necessária injeção de estima sexual (i.e., não era “culpa dela”). [N.B. ref. Tema: tristeza implícita de A.A. fazendo tocante confissão de amor enquanto J. está 1/2 perturbada por trauma da epifania de (1b)/(1c); i.e = mais uma rede de equívocos, de assimetria emocional.])”
O segundo aspecto (ligado ao primeiro) está no fato de que as narrativas parodiam o arco de uma comédia romântica: casal jovem e aparentemente feliz quase coloca tudo a perder por conta de encanações, segredos, “redes de equívocos” e “assimetrias emocionais”; reviravoltas parecem acentuar tais assimetrias e apontar para uma separação dolorosa ou coisa pior; reviravolta final (fruto de “epifania”) esclarece tudo e as coisas se ajeitam.
Claro que, em DFW, esse “ajeitar-se” envolve cargas dolorosas de ironia e desencantamento. Mas, a essa altura, o cinismo já se instalou na carne dos personagens, e a vida é o que é: uma merda, mas uma merda administrável graças ao que cada um proporciona a si mesmo; paradoxalmente, a solidão incomunicável permite que eles continuem juntos e, por que não?, felizes.