Artigo publicado hoje n’O Popular.
“Putin sempre foi um espião de quinta categoria”, escreve John Le Carré em Agente em Campo. “Agora era um espião transformado em autocrata que interpretava toda a vida nos termos de konspiratsia. Graças a Putin e sua gangue de stalinistas irrecuperáveis, a Rússia não avançava para um futuro brilhante, mas para trás, de volta para seu passado obscuro e delirante.” O livro (ed. Record, tradução de Marta Chiarelli) foi o último publicado por Le Carré em vida. Morto em 2020, o ex-espião que se reinventou como romancista para escrever algumas das obras fundamentais da literatura contemporânea, como O Espião que Saiu do Frio e A Garota do Tambor, ainda estava afiadíssimo aos quase 90 anos de idade.
Ao lado do também excelente Len Deighton, Le Carré retirou dos livros de espionagem a pegada aventuresca à James Bond, dando-lhes densidade, realismo, ambiguidade, ironia e tragicidade. Como diria Ivan Lessa, as histórias são simples e as tramas, complicadas. Bem e mal deixam de ser facilmente identificáveis e, em muitos casos, constituem uma categoria que não é sequer aplicável. Não há um mundo a ser “salvo” (não no sentido Marvel do termo, pelo menos), mas um jogo a ser jogado. Todos têm seus momentos de vilania, e o “heroísmo” só aparece como piada ou como um respiro antes do desastre. Em resumo, Le Carré escrevia para adultos inteligentes.
Em A Guerra no Espelho, por exemplo, o teor satírico explicita a falta de sentido de certas “missões”. Há um esforço notável e muito bem-sucedido para desmistificar a coisa. Trata-se, afinal, de uma sucessão de guerras sujas, travadas nas sombras e protagonizadas por seres humanos comuns, isto é, falhos, confusos e nada confiáveis. Aliás, essa é uma das razões pelas quais os livros de Le Carré não envelhecem (ou envelhecem muito bem): as questões geopolíticas mudam a todo momento, mas o caráter humano (e todas as desgraças que lhe são inerentes) permanece constante.
Uma das melhores passagens de Agente em Campo não diz respeito a nenhuma escaramuça ou intriga de espiões, mas, sim, ao momento em que o protagonista conta à filha o que faz para ganhar a vida: “Então é isso, Steff, agora você já sabe. Tenho vivido uma mentira necessária, e é só isso que tenho permissão para lhe contar”. A reação da filha, uma millennial típica, é espernear.
Não é simples escrever para adultos, quanto mais para adultos inteligentes. Na medida em que o mundo se infantiliza, as expectativas são frustradas continuamente, alimentando uma massa raivosa na qual cegos guiam outros cegos. Descarrilhamentos autoritários se tornam frequentes. Movimentos autocráticos e messiânicos sempre resultam em desastres. Vimos isso muitas vezes no decorrer da história. Estamos vendo agora, no Brasil e em outros lugares. A ânsia por clareza tropeça na opacidade do mundo. E é essa opacidade que Le Carré descreve tão bem.
Trabalhando com os elementos de um gênero literário que ajudou a estabelecer, Le Carré sempre remou contra as simplificações, fossem elas políticas ou literárias. O mundo é um lugar cruel e complicado. Não existem soluções fáceis. Não existem desfechos redentores. É preciso abraçar a incerteza e compreender que, nesse mundo, nessa vida, todo salto é um salto no escuro. Procure saltar bem acompanhado.