Coreanos

Um conto.

 

Nunca teve problemas com vizinhos. Até que começou a ter problemas com vizinhos. Mas, por meses e meses, não obstante os problemas, preferiu não reclamar com a síndica. Torcia para que os problemas se resolvessem sozinhos. Talvez eles passem a se comportar de outra forma, pensava, talvez se mudem, talvez morram, talvez se matem, olha como brigam, os filhos da puta. Mas os vizinhos não passaram a se comportar de outra forma, não se mudaram, não morreram.
E assim os problemas continuaram.
Certa manhã de domingo, por volta das sete, ao acordar pela enésima vez com uma canção gospel, o arrastar de um móvel e o som de berros e passos, quem anda de salto alto às sete da manhã de um domingo?, concluiu que não tinha mais escolha. Fez uma reclamação por escrito. A síndica disse que ia tomar providências, mas não fez nada. Semanas depois, os vizinhos tiveram a pior briga até ali. A mulher berrava. O homem berrava. Objetos foram atirados. Portas batendo. Urros. Xingamentos. Outra reclamação por escrito. A síndica não gostava de problemas com os vizinhos, e sua política se tornou evidente: a não ser que seja caso de polícia, o condomínio se limita a advertir os moradores problemáticos.
Uma advertência, e mais nada?
Veja bem…
Nem mesmo uma multa?
Não.
Ele vai acabar esganando essa mulher. Daí a senhora vai ter o seu problema de polícia.
Isso não vai acontecer. Aqui só mora gente de bem.
Ela berrou que vai partir a cabeça dele com um martelo.
O senhor deve ter ouvido errado.
Eu ouvi certinho.
O senhor deve ter ouvido errado.
As paredes são finas, o teto parece de papelão, dá pra ouvir tudo.
O senhor deve ter ouvido errado.
Se estou deitado na cama e esse vizinho vai ao banheiro, eu ouço o sujeito mijando e peidando e cagando.
Que horror. Por que o senhor ouve essas coisas?
Porque é impossível não ouvir.
O senhor não devia ouvir isso.
Mas é o que estou tentando te dizer. É impossível não ouvir. As paredes são finas, o teto parece de papelão, dá pra ouvir tudo. E eles berram. Eles sempre berram. Eles berram o tempo todo, sem parar.
Ninguém berra o tempo todo, sem parar.
Eles berram quase que o tempo todo. Ficou melhor assim?
É bem difícil entender o que uma pessoa diz quando berra.
Eu não acho nem um pouco difícil entender o que uma pessoa diz quando berra. Eu acho difícil entender o que uma pessoa diz quando fala baixinho. E aqueles dois são incapazes de falar baixinho. Eles nunca cogitaram falar baixinho na vida. Acho que eles nem sabem o que é falar baixinho. Eles devem achar que nem existe isso de falar baixinho. Falar baixinho não é uma opção pra eles. E é por isso que eles só sabem berrar. E eles berram quase que o tempo todo. E ela berrou que vai partir a cabeça dele com um martelo.
O senhor deve ter ouvido errado, aqui só mora gente de bem.
Gente de bem.
Eles são casados há pouco tempo.
O que isso tem a ver?
Tem casal que demora a se acertar.
Eles ficam o tempo inteiro se acertando.
Aqui só mora gente de bem.
Gente de bem? Que diabo é isso?
Gente de bem é gente de bem. Todo mundo sabe o que é gente de bem, ora essa.
Gente de bem, gente de bem, gente de bem. Minha senhora, presta atenção: não existe gente de bem NA PORRA DESSE PAÍS.
Como as advertências da síndica não surtissem efeito (na verdade, ele começou a duvidar que a síndica os tivesse advertido; a única coisa que os acalmava era interfonar para a portaria e pedir ao porteiro que interfonasse para os vizinhos, dizendo que alguém estava reclamando dos barulhos e da gritaria; envergonhados, os dois evitavam brigar por alguns dias, mas a vergonha passava logo, ou o ódio mútuo — e o ódio dela à sogra — suplantava a vergonha, e tudo recomeçava), e sem saber o que fazer, ele resolveu papear com um dos zeladores do condomínio, o mais falastrão deles. Quem eram os vizinhos, afinal? Sabia muita coisa acerca do casamento (como foi dito, a mulher não suportava a sogra, e as piores brigas ocorriam às vésperas dos feriados prolongados, quando a visita da sogra ou à casa da sogra era incontornável; embora casados há pouco tempo (segundo a síndica), raramente trepavam, e ele culpava a mulher por isso, aos berros, ao que ela respondia, também aos berros e chorando, que ele era um animal, você que é uma frígida de merda, eu não sou frígida, você é que é um bruto, bruto?, é, um bruto, um bronco, um bicho, você gosta, gosto porra nenhuma, toda mulher gosta, gosta porra nenhuma, gosta, sim, você me machuca, você é um animal, ah, vai se foder, vai você se foder, seu babaca, cala essa boca, sua frígida, eu vou partir a sua cabeça com um martelo, tá me ouvindo? TÁ ME OUVINDO?) e da rotina deles (iam a uma igreja evangélica nos finais de semana, daí a barulheira dominical, música gospel às sete da manhã, o apreço do homem por berrar que ela estava atrasada de novo, ao que ela respondia, e daí?, só vou nessa merda pra você não me encher o saco, pois não precisa ir se não quiser, ah, mas eu vou, sim, pra você e pra bosta da sua mãe não me encherem o saco, você é que enche o meu saco, vou contar pro merda do seu pastor o animal que você é, pode contar, não tô nem aí, vou contar mesmo, e eu vou contar que você é uma frígida de merda que não dá essa sua bucetinha de ouro pro marido, se o meu marido não fosse um animal escroto eu talvez sentisse vontade de transar com ele, porra nenhuma, você sempre foi essa merda frígida, por que casou comigo, então?, porque eu sou burro, eu sou burro pra caralho, bem que a minha mãe avisou, avisou que você é burro, burro pra caralho?, vai tomar no cu, vai tomar no cu você e a bosta da sua mãe, a sua mãe que se foda, não fala assim da minha mãe, eu falo como eu quiser daquela vaca, vai tomar no cu, sua frígida babaca, para de me chamar disso, então para de me encher o saco e para de xingar a minha mãe, pega a porcaria da toalha pra mim, pega você, eu tô saindo do chuveiro, azar o seu, vou molhar o quarto inteiro, azar o seu, quê que custa levantar essa sua bunda gorda da cama, abrir o armário e pegar a porcaria duma toalha pra mim?, quê que custa não se atrasar pra igreja?, vou atrasar mais ainda se você não pegar logo essa toalha, seu jumento, vou pegar a toalha, mas é pra enfiar no seu cu, que inferno, pega a toalha, por favor, só pega a toalha, que toalha que nada, eu vou enfiar é outra coisa no seu cu, sua cretina, que é pra você aprender, enfiar o quê?, você sabe muito bem o quê, vai enfiar porra nenhuma, me provoca pra você ver, essa sua lombriga aí nem fica dura direito, seu porco meia-bomba, não fica dura porque você é uma cretina e ninguém tem tesão em mulher cretina, e ninguém tem tesão num hipopótamo gordo, desajeitado e bruto que nem você, vai à merda, vai cagar, vai você, vai você, babaca, babaca é você, você que é, você), mas não sabia quem e como eram.
Coreanos, respondeu o zelador. Mas tem certeza que o barulho vem do apartamento deles?
Absoluta.
Essas coisas enganam, às vezes.
Tenho certeza.
Eles são caladinhos e educadinhos.
Ela tava no banho e pediu pra ele pegar uma toalha. Ele disse que ia pegar, sim, mas pra enfiar no cu dela.
Eita.
Isso foi a coisa mais leve que ele falou.
Rapaz.
Os dois aos berros.
Jesus.
Eles não são caladinhos nem educadinhos.
Caralho.
Já reclamei por escrito duas vezes, já falei com a síndica, mas ela não fez nem vai fazer porra nenhuma, isso eu já entendi.
Ela é gente de bem.
Claro que é. Aqui só mora gente de bem. Como é que a síndica não ia ser gente de bem?
Calma. Ela só gosta de conversar bastante antes de multar ou coisa parecida. Na verdade, pra ser sincero, acho que ela nunca multou ninguém na vida. Fica só na base da conversa mesmo, mas tudo acaba se resolvendo. A gente nunca teve nenhum problema assim sério aqui.
Pois eu acho que ela nem falou com eles. Só disse que ia falar pr’eu sair do pé dela.
É possível. Ela não gosta de bate-boca.
Que bate-boca? Ela é a síndica. É só pedir pro casalzinho dar uma maneirada.
A gente nunca sabe como as pessoas vão reagir.
Mas isso faz parte do trabalho dela, caramba.
Ela é meio tímida, fica sem graça de chamar a atenção dos outros.
Ela fica dizendo que eu tô ouvindo errado.
Olha, pode ser.
Eu não tô ouvindo errado.
Se o senhor diz, eu acredito no senhor. Mas pode ser.
Não durmo direito faz um tempão. Eles não têm hora pra brigar. Chego no banco parecendo um zumbi. Não consigo dormir nem no domingo.
Por quê?
Eles me acordam todo domingo com a desgraça daquela música insuportável.
Que música?
Gospel.
O senhor me desculpe, mas não tem nada de errado com música de louvor.
Não tô dizendo que tem algo de errado com a desgraça dessa música.
Louvor e adoração não fazem mal pra ninguém.
Tô dizendo que é errado ligar o som na maior altura às sete da manhã de domingo.
“Deus proverá.”
Tô dizendo que é errado ficar berrando, berrando, berrando feito dois possuídos.
Não fala uma coisa dessas, por favor.
Achei que seria apropriado, dadas as circunstâncias e o rumo dessa conversa.
Olha só, eu…
O quê?
Já que o senhor insiste, eu vou trocar uma ideia com o irmão. Ele é gente boa.
Ele não é nada bom com a porra da mulher dele.
O senhor xinga demais, isso não é bonito.
A minha vida não anda nada bonita, e a culpa é desses dois arrombados.
Eu prefiro não sair por aí xingando e julgando os outros.
Bom, eu me reservo o direito de xingar e julgar quem fica berrando na minha orelha.
Vou falar com ele.
“Deus proverá.”
Não é certo fazer piada com isso.
Eu não tô rindo, não.
Tá, sim, senhor. Mas tudo bem. Cada um sabe da própria vida.
E eu sei da vida desses dois, mas a verdade é que eu não queria saber, não. Não queria saber nada.
Vou falar com ele.
Obrigado. Até mais.
Se o zelador conversou ou não com o sujeito, ele não soube nem procurou saber. Provável que tenham se reunido para falar mal dele. Sujeitinho desrespeitoso, o senhor precisava ver. Deve ser ateu. Trabalha em banco, mas aposto que é comunista.
Etc.
E os problemas continuaram.
Agora, pelo menos, ele sabia quem eram. Coreanos. Passou a prestar mais atenção. E não demorou muito para encontrá-los no elevador. Sorriram, simpáticos. Ele, gordo, mais de 1,90 de altura, camiseta, bermuda e tênis. Ela, 1,50, magrinha, de saltos e terninho, crachá de empresa de TI, cabelos tingidos de castanho-claro, rosto bonito, bem maquiada. Ambos na faixa dos 20 e tantos anos. Trocaram sorrisos e cumprimentos. Sabiam que era ele o vizinho reclamão? Provável que sim. O zelador sempre com muito a dizer. Reclamou da música de vocês. Que espécie de pessoa reclama de louvor a adoração? Eu achava que aqui só morava gente de bem. Esse sujeito é um debochado. Toma cuidado com esse tipo de pessoa.
Etc.
Naquela noite, por coincidência, ele os ouviu trepando. Era raro, mas acontecia. O homem fazia um som monótono, similar a um motor estacionário. A mulher respondia a cada estocada com uma sequência regular de oh oh oh oh oh oh oh oh oh oh, sem quaisquer variações de intensidade ou volume. Às vezes, reclamava que doía, assim não, porra, mas era ignorada. Pelo som da coisa, percebeu que ela estava de quatro, num extremo da cama, e ele de pé, as solas arrastando no chão de vez em quando. Dada a grande diferença de estatura, talvez fosse a melhor opção disponível. Como de hábito, e para a sorte dela, a brincadeira não demorou. Ou melhor, ele não demorou: menos de três minutos na função e o motor estacionário fez um som mais grosso, como se uma correia estivesse prestes a arrebentar, o ritmo das estocadas aumentou, os intervalos entre os oh oh oh oh oh dela ficaram mais curtos, e então houve um instante de silêncio absoluto (Eles são caladinhos e educadinhos.), e a próxima coisa que se ouviu foi o som de passos, seguido pelo de uma camisinha sendo retirada e jogada na privada. Em seguida, o coreano mijou. E a voz fina da coreana pediu (o berro se sobrepondo ao som da caixa de descarga em processo de reabastecimento) um copo d’água.
Vai buscar você, respondeu o marido, batendo a porta do banheiro.
Ele conheceu poucos coreanos na vida, a maioria no trabalho, como gerente de contas jurídicas em uma agência da Caixa na Liberdade, e achou todos muito simpáticos. Também teve um colega coreano na faculdade, gente finíssima, engraçado, tranquilo. Mas os vizinhos eram simpáticos. Eram simpáticos com o zelador, com a síndica. Eram simpáticos no elevador. Mas não eram simpáticos entre si.
E os problemas continuaram.
Os mesmos: discussões terríveis duas ou três vezes por semana, e as ruidosas manhãs de domingo, música gospel, bate-bocas, berros, xingamentos, portas batendo, arrastar de móveis, saltos.
Até que, certo dia, tudo parou.
Ele não percebeu de imediato porque estava acompanhado. Havia meses que não trazia ninguém para casa. A colega recém-transferida, divorciada há pouco, querendo trepar menos porque gostasse dele e mais porque quisesse exorcizar o ex-marido. Como isso não fizesse a menor diferença para ambos, foram a um bar após o expediente e depois para o apartamento mais próximo — o dele. Largada na cama, pernas abertas e olhos fechados, a colega disse que preferia não ser chupada (Tô imunda.), recusou-se a chupá-lo (Gosto muito disso, não.), insistiu que a coisa não demorasse muito (Fico meio assada depois, não sei o que acontece.), mas convidou-o a gozar onde quisesse (Menos na cara, sempre esguicha um pouco no cabelo e é um saco pra lavar depois.). Ele a chupou mesmo assim (ela resistiu no começo, mas depois relaxou e gozou uma vez), após o que ela gentilmente se dispôs a retribuir (por pouco tempo, pois chupava mal, os dentes machucando a glande, e ele disse, disfarçando: Que tesão, quero meter, vem.), e a coisa se prolongou sem maiores ruídos e em duas posições (De quatro, não. Tenho vergonha da minha bunda, viu como é quadradona?). Por fim, ele gozou com ela rebolando sobre, os olhos sempre fechados e os peitos que amamentaram quatro filhos (Junior fez direito e trabalha com o pai, mas quer prestar concurso e virar juiz, Janaína tá quase se formando em fisioterapia, Juliana só quer saber de farrear e encher a cara, Jussara era boa aluna, mas agora descobriu os meninos. Você nunca casou nem teve filho, né?) pendendo e balançando, agridoces, conforme o andamento dos trabalhos. Depois, deitados na cama, até para que ela parasse de falar do caso do ex-marido com a estagiária (Levou a piranha prum resort em Foz e me disse que tava numa convenção em Goiânia, o desgraçado.), ele contou sobre os coreanos. A colega sugeriu um processo, ao que ele retrucou que era uma possibilidade, mas só em último caso. Sem que tivessem falado ou combinado nada, passaram a noite de sexta e o dia de sábado juntos, a nítida sensação de que nenhum deles tinham para onde ir ou coisa melhor para fazer. A segunda trepada, na manhã seguinte, depois que se banharam (primeiro ela, depois ele, a porta do banheiro fechada em ambos os turnos), foi melhor. Ele explicou que o uso dos dentes era incômodo e ela prestou um pouco mais de atenção ao que fazia (mal, ainda, mas uma chupada é uma chupada). Ela se deixou chupar e gozou duas vezes em sequência, o segundo orgasmo de uma intensidade tremenda.
Mais tarde, à mesa da sala, comendo uma macarronada que cozinharam juntos, ela disse: Gosto de pau grande.
Por que tá me dizendo isso?
Por nada. Só conversando. Meu marido tem um pau enorme. Ex-marido. Ex-pau, sorriu.
A maioria das mulheres que conheci dizia não gostar de pau grande. Machuca. É o que elas falavam pra mim, pelo menos.
Bom, acho que tem gosto pra tudo. Minha instrutora de pilates adora dar o cu, coisa que só fiz uma vez e foi um horror. Outro dia, sem querer, ouvi a Juliana falando pruma amiga que adora engolir porra. Te juro, meu ex gozou na minha boca uma vez, gozou sem avisar, o filho da puta, porque ele é escroto assim, ele gozou na minha boca e eu vomitei.
Sério?
Corri pro banheiro e vomitei na mesma hora.
Caramba.
Mas pode ser que uma ou outra das suas conhecidas tenha dito aquilo pra não te deixar sem graça. Seu pau não é muito grande.
Meu pau é pequeno, pode dizer.
Ela riu. Pelo menos não me deixou assada.
Você não gozou comigo metendo.
Sempre tive dificuldade pra gozar com penetração, sei lá por quê. Com qualquer um.
Acontece.
Mas você chupa gostoso. Meu ex não chupava direito.
Se ele não chupava direito e você tem dificuldade pra gozar com penetração, então você não gozava muito.
Transando com ele? Quase nunca. Mas eu tenho os meus brinquedos e ele viajava bastante.
Você só teve o seu ex-marido?
Não. Tive outros antes dele. E outros depois. Nenhum durante. Devia ter tido. Casamento é um troço desgraçado demais.
Meus vizinhos coreanos que o digam.
Desgraçado demais.
Nunca casei. E, a essa altura da vida, acho que não vai rolar, não.
Nunca se sabe. Essas coisas acontecem quando menos se espera.
Que coisas?
A gente se apaixona sem mais nem menos.
Ah, é?
Vai por mim. É como pegar uma doença.
Depois, terminado o jantar, pediu a ela que escolhesse um filme. Viram Margin Call.
Esse Kevin Spacey é maravilhoso, ela comentou ao final.
Era meia-noite quando voltaram para o quarto. Ele a chupou de novo. Ela o masturbou, oferecendo os peitos. Dormiram logo depois.
Ele só percebeu o silêncio dos coreanos na manhã seguinte. Domingo, mas nada de música gospel. Nenhum berro. Silêncio total.
Acho que o zelador e a síndica estão certos, disse a colega. Estavam na porta, despedindo-se. Ela ia almoçar com a filha que só enchia a cara e gostava de engolir porra. Você está imaginando coisas.
Pode ser, ele sorriu.
Bom, até amanhã. Obrigada pelo finde.
Por nada. Tchau.
Passou o dia todo com os ouvidos atentos. Teriam viajado? A única explicação possível. Então, por volta das duas da madrugada seguinte, acordou com o som de algo muito pesado sendo arrastado. A coreana gemia. Era o mesmo oh oh oh oh oh oh oh de quando ela e o marido fodiam, mas era óbvio que não estavam fazendo nada disso. A coisa era arrastada para fora do quarto. Ele se levantou e acompanhou o ruído. Corredor, sala. Ouviu a porta do apartamento deles sendo aberta. O arrastar chegando à área comum. Não havia câmeras nas áreas comuns, apenas nos elevadores. Será que. Num impulso, fechou a porta do apartamento e correu para as escadas. Descalço, ficou ali parado, procurando não fazer barulho. O arrastar e os oh oh oh oh oh vinham desde o andar superior. Um oh mais forte, algo sendo empurrado. Uma sequência de baques nos degraus, e então uma coisa enorme, enrolada em vários sacos plásticos pretos e fita isolante, caiu no intervalo entre os dois lances de escadas que ligavam os andares. A coreana veio logo atrás, ofegando, de tênis e moletom vermelhos, os cabelos presos num rabo de cavalo. Assustou-se ao vê-lo parado ali, ao final do lance seguinte, e ergueu as mãos como quem se rende; as mãos estavam repletas de calos e bolhas. Ficaram imóveis por algum tempo, encarando-se. Então, ele respirou fundo, abriu um sorriso tranquilizador e disse: Me espera aqui. Vou calçar uns tênis.
Ela hesitou, mas fez que sim com a cabeça.
Antes de deixar as escadas, ouviu a voz surpreendentemente baixa: Traz uma muda de roupas também.
Levaram dez minutos para descer os seis andares que faltavam. Foi só quando chegaram à garagem que ele se lembrou de que ali embaixo havia câmeras. A gente tá fodido.
Relaxa.
Relaxar como?
Só estão funcionando as do outro lado.
Desde quando?
Desde que eu dei um jeito nas desse lado.
Quando?
Agorinha mesmo.
Como?
O sistema do condomínio é uma porcaria.
Tá, mas.
Me espera aqui. Vou trazer o carro aqui pra perto.
Depois de arrastar o pacote até o Corolla, o porta-malas aberto e à espera, ele voltou a falar das câmeras. Ela suspirou como se lidasse com um oligofrênico e não disse mais nada. Em todo caso, era tarde demais.
A coreana dirigiu por uma hora, até uma pequena chácara não muito distante de Mairiporã. Não trocaram nenhuma palavra durante o trajeto. O buraco já cavado no quintal, a uns trinta metros dos fundos da casa. Tiraram o pacote do porta-malas e o arrastaram até a cova. Começou a chover. Em silêncio, ele pegou uma pá que estava por ali e terminou o serviço. Durante todo o tempo, ela ficou agachada, a cabeça coberta pelo capuz do moletom, apontando a lanterna na direção do buraco que ele fechava pouco a pouco.
Posso tomar um banho?, perguntou ao terminar.
Estava exausto. A coreana destrancou a porta dos fundos e o levou pela mão até a suíte. Não acendeu nenhuma das luzes, exceto a do banheiro, e se sentou sobre a tampa do vaso sanitário. Respirou fundo e fechou os olhos por um instante. Ainda segurava a lanterna com a mão direita. Como ela não indicasse que o deixaria só, ele se despiu, abriu o chuveiro e entrou no box. Água gelada. Foi só então que ela saiu. Voltou pouco depois com a muda de roupas que ele trouxera e uma toalha. Deixou tudo sobre a tampa do vaso, depois se abaixou, pegou as roupas sujas e desapareceu outra vez.
Foi reencontrá-la no quarto penumbroso, iluminado apenas pela luz que vinha do banheiro; estava sentada na beirada da cama, as mãos sobre o colo, olhando para o chão. A chuva lá fora engrossara. Depois eu queimo as suas roupas, disse em um tom baixo, gentil; nem parecia a mesma voz que berrava com o marido.
Eu tava pensando… e a mãe dele?
Morreu na semana passada, respondeu sem se virar.
Irmãos, primos?
Ele não tinha mais ninguém. Relaxa. Vai dar tudo certo.
Vai dar tudo certo, repetiu maquinalmente. O que você fez? Deu uma martelada na cabeça dele?
Ela riu de súbito, tapando a boca, o gesto de uma adolescente envergonhada. E depois: Não. Muita sujeira. Foi veneno.
Veneno.
Veneno. Relaxa. Eu cuidei de tudo. Vai dar tudo certo. Você quer dormir aqui?
Não seria melhor eu voltar? Manter a rotina? Tenho que trabalhar daqui a pouco.
Tem razão.
E eles voltaram. De novo, nenhuma palavra trocada no trajeto. Quase seis da manhã quando chegaram à rua em que moravam.
Me deixa ali na esquina.
Em silêncio, ela parou o carro.
Tem algum dinheiro?
Dinheiro?
Deixei minha carteira em casa.
Alcança a minha bolsa. Taí no banco de trás.
Uns vinte reais, só.
Ela achou uma nota de cinquenta e jogou a bolsa de volta.
Sem dizer mais nada, ele pegou o dinheiro, desceu e tomou a direção contrária à do prédio, ouvindo o carro arrancar às suas costas. Rua e calçadas desertas, o bairro sempre tranquilo àquela hora. Às segundas, tomava café na padaria.
Manter a rotina, repetiu.
Em casa, meia hora depois, tomou outro banho e se vestiu para trabalhar. Não estava atrasado. Ficou sentado na beirada da cama, a mesma posição que ela assumira na chácara, mãos sobre o colo, olhando para o chão. A cama desfeita. Ainda um cheiro forte de sexo no cômodo. No apartamento de cima, o som de passos, da tampa do vaso sendo abaixada, dela urinando, da descarga, da torneira da pia sendo aberta e fechada, mais passos, e o que ela fez? Não saiu do quarto. Deitou-se? É provável. Eu me deitaria, se pudesse. Como não pudesse, levantou-se e foi trabalhar.
Que cara é essa?, a colega perguntou tão logo entrou na agência. Parecendo um zumbi.
Dormi mal. Dormi pouco.
Sentiu a minha falta, foi isso?
Foram os coreanos.
Com uma expressão desinteressada, a colega suspirou e se encaminhou para a mesa que ocupava, não sem antes dizer: Malditos coreanos.
O dia se arrastou, monótono. Foi direto para casa ao final do expediente. E, então, viu-se na mesma posição daquela manhã, vestido e calçado, sentado na beirada da cama, mãos sobre o colo, olhando para o chão. E, como antes, ouviu quase os mesmos sons no apartamento de cima, passos, a tampa já abaixada porque o homem da casa não estava mais lá, a urina, a descarga, a torneira, mais passos, mas dessa vez os passos seguiram pelo corredor, seguiram até que não os ouvisse mais. Pouco depois, a campainha tocou. Ele destrancou a porta e abriu passagem. Sem dizer nada, ela caminhou até o quarto e se estirou na cama. Usava um pijama azul-marinho. Estava descalça, os cabelos desgrenhados. Nenhuma maquiagem. Ele descalçou os sapatos e se deitou ao lado dela. Ficaram olhando para o teto.
Dormi o dia inteiro, ela disse após alguns minutos.
Eu ainda não dormi.
Eu sei. Pode dormir agora.
Tá bom.
Que cheiro é esse?
Cheiro?
Esse cheiro.
Desculpa. Esqueci de trocar as roupas de cama.
Alguém veio aqui? Você esteve com alguém?
Pensou em mentir, mas por que faria isso? E respondeu: Na sexta, no sábado. Uma colega de trabalho.
Com um gesto rápido, meio ansioso, alcançou a mão direita dele. Entrelaçadas. Um aperto firme. E perguntou: Ela vai voltar?
Ele fechou os olhos antes de responder, sorrindo, que: Não. Ela não vai voltar, não.

 

***

 

Imagem: óleo sobre tela de Carina Aerden.