Texto publicado hoje n’O Popular.
Embora seja chamado de “o último dos beats”, não creio que Richard Brautigan (1935-1984) tenha muito a ver com um Kerouac, por exemplo. Se o “datilógrafo” Kerouac é muitas vezes palavroso e desleixado, Brautigan é econômico e preciso; se as imagens de Kerouac às vezes soam meio forçadas e até constrangedoras, as de Brautigan são inesperadas e misteriosas. O leitor pode constatar isso em Pescar Truta na América, relançado há alguns meses pela editora José Olympio com tradução de José J. Veiga.
Publicado originalmente em 1967, o livro pode ser lido como uma sequência de narrativas que, aos poucos, formam uma tapeçaria autobiográfica. Há trechos em que o jogo metaliterário é esfregado na cara do leitor (“Você está a poucas páginas de distância de Pescar Truta na América”), mas a maior parte da novela é constituída por blocos mais ou menos independentes que revisitam diversas passagens da vida do narrador, como sua “infância na estranha cidade de Portland”, a estadia em uma “cabana no alto de Mill Valley”, uma viagem ao sul do México (que por sua vez remete às férias escolares em que, menino, trabalhava “para uma velha na costa do Pacífico”), um acampamento em Idaho etc.
Nesses recortes organizados de forma não-linear, o melhor está na maneira como ocorrências corriqueiras são ressignificadas pela força daquelas imagens. Descrições simples adquirem ares fantasmagóricos e às vezes surreais. Gestos cotidianos são ressaltados por um calor humano que exsuda de determinadas escolhas ou deslocados para uma atmosfera de estranhamento, em que cada coisa remete a outra coisa que jamais se revela por inteiro e nos deixa na expectativa de uma epifania que jamais se completa. Aliás, o próprio título do livro assume essa característica expectante: em um trecho, diz respeito ao ato de pescar trutas na América; noutros, a expressão como um todo substitui o nome de uma pessoa ou de um lugar.
Aqui e ali, Brautigan investe em uma espécie de concreção das metáforas (daí aquele ressaltar dos gestos cotidianos, conferindo beleza e significado a ações e palavras que muitas vezes aparecem esvaziadas por aí, nos livros e na vida). Cito alguns exemplos: “O sol parecia uma enorme moeda de cinquenta centavos que alguém mergulhara em querosene e acendera com um fósforo, para então pedir: ‘Segure isto enquanto vou comprar um jornal’, e depois colocar a moeda em minha mão sem nunca mais voltar”; “Eu não podia fazer outra coisa porque meu corpo era como pássaros pousados em fios de telefone esticados mundo afora, nuvens agitando os fios delicadamente”; “Depois subimos de carro seguindo o curso do riacho até acima dos diques dos castores, e as trutas nos encararam como folhas caídas”; “Chove aqui há dois dias, e entre as árvores o coração para de bater”.
Em seus movimentos inesperados e pela forma como mergulha para voltar à superfície uma vez após a outra, sempre trazendo uma surpresa, Pescar Truta na América é um testemunho de liberdade autoral, algo próprio dos que parecem ouvir o coração do mundo bater em cada mísera coisa, em cada mísero ser. Seu tom “religioso e íntimo” só pôde ser alcançado por alguém com plena consciência da transitoriedade de tudo – exceto da beleza.