No capítulo 20 da segunda parte do formidável Explosão, Hubert Fichte primeiro transcreve burocraticamente uma entrevista que fez com Salvador Allende, e depois, de forma inesperada e quase onírica, narra um inadvertido encontro com Jorge Luis Borges. A justaposição dos encontros, a enorme diferença com que cada um deles é abordado, a carga poética de um em detrimento da algaravia putrefata do outro — nada disso é por acaso.
Ao introduzir a entrevista com Allende (p. 275):
Não existe literatura engajada, pensou Jäckl.
O critério fundamental da literatura é que ela não se amarre a nada.
A única que não pode ser amarrada.
Depois, diante de Borges (p. 282-4)
Em Buenos Aires impera a lei da eternidade.
(…)
Se existe eternidade e tempo,
e Jäckl citou Borges consigo mesmo
E Jäckl não duvidou que nem sequer pudesse existir um fim do tempo.
Então aquilo ali, Jäckl esperando por Borges, já sucedeu infinitas vezes.
(…)
Eram quinze minutos com a memória do mundo na forma do mais puro ouro em pó.
Depois, Fichte ainda sacaneia lindamente o chileno (p. 285):
No Chile Jäckl queria saber, antes de mais nada, se o regime socialista de Allende, que dava às crianças famintas um litro de leite por dia, oferecia também aos gays famintos seu um oitavo de creme ou então pelo menos um dezesseis avos.
(No mesmo capítulo, Fichte também transcreve uma longa e lúcida entrevista que fez em 1975 com Carlos Jorquera sobre as causas e os efeitos do golpe militar, as torturas, as presepadas do governo Allende etc. É, talvez, e salvo pelo delirante respiro borgeano, o capítulo mais “jornalístico” do romance.)