Resenha publicada na edição de hoje do Estadão.
“Inverno e silêncio”, escreve Martim, narrador de A Noite da Espera, logo no começo desse volume com o qual o amazonense Milton Hatoum abre a trilogia O Lugar Mais Sombrio. Exilado em Paris no final dos anos 1970, o protagonista relembra o que vivenciou em Brasília entre 1968 e 1972, período mais violento da ditadura militar. É um romance de formação que, dado o contexto político-repressor no qual se desenrola, é também um romance de deformação: Martim amadurece enquanto o país apodrece e, feito “as pétalas duras de uma flor vermelha” do cerrado, “exala um perfume torpe”. É triste constatar que tal perfume ainda não se dispersou.
A narrativa é estruturada como uma sucessão de anotações em um diário, as quais são revistas e organizadas no exílio pelo protagonista, e acompanha Martim desde os dezesseis anos. Ele passa pela separação traumática dos pais, ainda em 1967, após a qual se muda de São Paulo para o Distrito Federal. A mãe, Lina, deixa o marido para se casar com um artista plástico, com quem depois irá para o interior de Minas Gerais, alimentando o distanciamento surdo, quebrado (mas jamais vencido) pelas cartas que eventualmente troca com o filho. O pai, Rodolfo, é um engenheiro que parece incapaz de poupar Martim da revolta que sente por ter sido abandonado, uma “sombra enorme, a três passos da soleira da porta”, espiando enquanto o rapaz lê as raras notícias que recebe da mãe.
Em que pesem as saudades e os mal-entendidos, como na passagem em que Martim viaja a Goiânia para se encontrar clandestinamente com Lina e acaba passando a noite sozinho em um hotel na avenida Goiás, acompanhado apenas pela leitura de A Educação Sentimental, de Flaubert, o distanciamento da mãe é físico, mas não afetivo. Por outro lado, o alheamento de Rodolfo, a despeito de Martim viver com ele sob o mesmo teto (ao menos por um tempo), é amplo, geral e raivosamente irrestrito, e incrementado por posições políticas divergentes.
Assim, estudando a princípio no Centro de Ensino Médio e depois na Universidade de Brasília, convivendo com uma trupe que inclui a filha de um senador pró-ditadura e o filho de um diplomata afastado pelo regime, errando desprotegido por uma Brasília cheia de “armadilhas”, de um “silêncio precário”, “a província mais espaçosa do país”, testemunhando e às vezes sofrendo na pele a mão pesada da repressão, Martim cresce. Participa de uma montagem natimorta de Prometeu Acorrentado, cujo aborto é assistido pelo próprio ditador Médici, ajuda a editar uma revista com artigos, poemas e traduções, a “nova liberdade jorrando do Planalto” (publicação que previsivelmente lhes trará problemas), trabalha na mítica Livraria Encontro e se deixa levar pela noite adentro, um “viajante imprudente” acompanhado por outros.
Hatoum imprime urgência à narrativa de tempos conturbados, equilibrando ocorrências familiares e acontecimentos históricos de tal modo que estes espelham aquelas e vice-versa. Dados o distanciamento materno e a ausência paterna, é como se Martim se constituísse no olho do furacão, um “órfão” girando ali com os olhos bem abertos. Seu amadurecimento se dá no vácuo do lar implodido e à sombra da brutalidade ditatorial, no útero metastático da República que, ainda hoje, insiste em devorar seus cidadãos – A Noite da Espera aponta para a continuidade do “inverno de nosso descontentamento”. É, portanto, um romance necessário sobre o nosso caráter disfuncional. Que os volumes seguintes sigam esmiuçando a doença republicana que nos acomete.