FW – notas (III)

image

::: A ideia de que, em/para uma primeira leitura, seja possível abordar o Finnegans Wake a partir de qualquer ponto ou capítulo me parece despropositada. Por mais que sua estrutura seja circular (olá, Giambattista) e o fim aponte para o começo, há um desenvolvimento narrativo que só é plenamente perceptível e apreciável por meio de leitura e releituras lineares. Em sendo assim, também me parece bobagem afirmar (como já ouvi) que FW não é literatura, mas música, isto é, de que deveria ser usufruído em função da musicalidade de suas construções, e não pelo sentido que (sim) é desvelado conforme a narrativa (sim!) avança. Não se engane: trata-se de um romance, não raro indomável, mutante, onírico, tempestuoso, obscuro como a noite em que se arvora, mas um romance.

::: O progresso da narrativa se dá conforme avançam a noite e o sonho, este caudaloso como um rio, rio que é o próprio romance: quatro partes, dezessete capítulos, uma família, personagens que se alternam (os filhos tomam o lugar dos pais, estes como que ressurrectos naqueles; a mãe volta para se despedir, quando afinal lemos sua carta, referida inúmeras vezes ao correr do livro, e ela monologa e flui, absorvida pelo romance-rio) (estou me adiantando) (foda-se) (linearidade na leitura, não em minhas anotações), situações que parodiam/reimaginam/metamorfoseiam uma míriade de autores, narrativas & personagens outros (Tristão e Isolda, A Raposa e as Uvas, Ísis e Osíris, Gênesis, Apocalipse, Wellington, Swift, São Patrício e, óbvio, Finn McCool).

::: Um panarama (não panaroma) possível (definitivo?) (nem fodendo): o protagonista (HCE), emprenhado (sim) (metaforicamente, vai) por sua mulher ALP (ela é o riverrun, o espaço kantiano onde se espraia/flui o tempo-HCE, ambos como formas a priori da sensibilidade), sonha o romance, escrito pelo filho Shem (the Penman), reescrito/falseado/publicado/divulgado pelo outro filho Shaun (the Postman), que, por sua vez, toma o livro (capítulos 14 a 16) e também a irmã, Issy (cada Isolda tem o Tristão que merece), antes que o Pai (absorvido pela culpa e destroçado pela fala do populacho na primeira parte, substituído pelos filhos no começo da segunda, reinvestido de um corpo (velho, cansado) e de uma função (dono de pub) e mais uma vez acusado por antigas (exibir-se às mijonas no parque) e novas (sentimentos incestuosos pela filha) faltas) retorne para responder pela enésima vez (de uma vez por todas?) por seus crimes (note-se que sua falha é, a exemplo dele próprio, apriorística, tornada palpável na medida em que, após e em função da Queda, como um sintome d’Ela, HCE se dispõe linguageiramente) (oh yeah) e, quando a noite se aproxima do fim, copula com ALP (agora Miss Porter, III.4), coito interrompido porque o filho Jerry (Shem) acorda de um pesadelo no qual vê o Pai enrabando a Mãe (“Podes observá-lo nessa perspectiva-ré porque esse vínculo másculo eclipsa parcialmente a cova.”) e, mais/pior do que isso, no sonho, o Pai se confunde com a visão de um parque (“Já ouviste contar a história de Helius Croesus, esse Elefante alvidourado do nosso zooparque? Você mespanta. Não é assim que comandamos pela retaguarda, se a dama o permite, à perspectiva do pássaro, uma profusa e fina vista belbundante do parque? Finnanalmente este parque tem sido causa da admiração de todos os estrangeiros gréculos e romanos, que cá chegam”). Parque, Jardim. Homem, Queda(s). Miss Porter procura tranquilizar o filho, mas a intranquilidade contamina a todos, incluindo o velho Porter (HCE) que, em sua cama, segue teso, mas oprimido pela Culpa — e é também da tensão entre uma coisa e outra que, desde o começo, o romance é disposto. No desfecho do penúltimo capítulo, o abraço diamantino dos velhos afinal irreleva quaisquer acusações anteriores e ulteriores, HCE como que lavado pela águacorrente ALP. Ambos fluem para o fim. Agora, é a vez dos filhos: “Como uma geração orienta a outra. Após a queda”.