Perturbação

1974

O formidável David Peace estreou na literatura com uma tetralogia policial animalesca, o quarteto de Yorkshire ou Red Riding Quartet: 1974, 1977, 1980 e 1983. Os romances foram publicados entre 1999 e 2002 e depois muito bem adaptados para a televisão britânica, em três partes (esta, esta e esta). A Benvirá lançou os quatro livros no Brasil, mas eu não conferi as traduções. Em todo caso, se o amigo aí consegue ler no original, a prosa alquebrada, repetitiva e estonteante de Peace merece ser conhecida tal e qual veio ao mundo.

Já tinha ouvido falar do autor por conta de The Damned United, seu conhecidíssimo romance acerca de Brian Clough (nunca ouviu falar? Gol da Alemanha), e é claro que eu, a scouser born & bred, devorei o belíssimo Red or Dead, em que Peace nos restitui Bill Shankly (também não? 7×1) em toda a sua grandeza.

Agora, li 1974 e só posso agradecer ao autor pelas últimas noites mal dormidas. A história se passa em Yorkshire, às vésperas do Natal do ano-título, e temos crianças mortas, corrupção policial, conspirações e um narrador cujo interesse primeiro é galgar uns degraus na carreira de jornalista. Poor fucking bastard.

O romance ensaia um andamento policialesco convencional (a proverbial ligação entre diversos crimes que só o protagonista parece enxergar; o teatro dos vampiros que suga a cidade e destroça quem se coloca no caminho; a tensão entre fazer o certo ou mandar tudo às favas e se dar bem), mas Peace, felizmente, e com todo o cuidado, esmigalha os desdobramentos mais óbvios em favor de um anoitecer trevoso que sufoca narrador e leitor.

As coisas desandam aos poucos, e a verdade é algo tão desumanamente insuportável que, a certa altura, comecei a torcer para que o nosso jornalista desse uns passos para trás, pedisse uma transferência para a seção de esportes e fosse cobrir os jogos do Leeds United (que, meses antes, sob a batuta de Don Revie, vencera seu segundo título inglês).

É claro que isso não acontece. E, até para não incorrer em spoilers, talvez seja o caso de falar um pouco sobre a escrita de Peace. O yorkshiriano tem esse talento único para a rarefação. É muito difícil fazer com que um estilo baseado em repetições, períodos curtos e quebras frequentes funcione. Em geral, esse tipo de procedimento redunda num maneirismo bocó que procura esconder sérias deficiências. Peace, no entanto, é muito bem-sucedido.

Ele tem uma incrível noção de ritmo e, o mais importante, usa e abusa desses expedientes não como elementos estilístico-masturbatórios, mas, sim, para calçar a narrativa. Aqui, a forma exterioriza à perfeição o coração apodrecido e os tecidos esgarçados do lugar e das circunstâncias. Ademais, na medida em que temos uma narração em primeira pessoa, e tendo em vista o que o protagonista vê e vivencia, é brilhante como tamanha perturbação contamina o romance em todos os seus níveis.

Por fim, preciso me referir ao clímax subterrâneo, a descida empreendida pelo protagonista aos intestinos, literais e figurativos, de um lugar em que criancinhas são (figurativamente) trituradas. Eu os deixo com Peace:

The tunnel had been bricked up about fifteen feet ahead, the bricks painted blue with white clouds, the floor covered in sacking and white feathers.
Against the two side walls were ten or so thin mirrors all lined up in a row.
Christmas tree angels and fairies and stars hung from the beams, all shining in the glow of the lamps.

Paro por aqui. Mas não se enganem: não é porra do paraíso.