A macieira

Patty Baker

“Mais de cinquenta anos se passaram desde o fim da guerra. Esqueci muito, mesmo coisas que eram muito próximas de mim — lugares em particular, datas, e nomes de pessoas –, e mesmo assim ainda posso sentir aqueles dias em cada parte do meu corpo. Sempre que chove, faz frio, ou um vento feroz está soprando, sou levado de volta ao gueto, ao campo, ou para as florestas onde passei muitos dias. A memória, parece, tem raízes profundas no corpo. Às vezes, apenas o cheiro da palha apodrecida, ou o chamado agudo de um pássaro, basta para me levar de volta, me perfurando fundo.
“Eu digo ‘fundo’, embora ainda não tenha encontrado as palavras para dar voz a essas fortes cicatrizes na minha memória. Com o passar dos anos, tentei, em mais de uma ocasião, voltar e tocar as tábuas em que dormíamos no campo, e provar a sopa aguada que nos davam lá. Mas todo esse esforço não rendeu mais do que frases emaranhadas, palavras incorretas, ritmo desconjuntado, personagens fracos ou exagerados. Uma experiência profunda, isso eu já aprendi, é facilmente distorcida. Desta vez, também, não tentarei pôr a minha mão nesse fogo. Não é o que aconteceu no campo que relatarei, mas o que aconteceu àqueles que escaparam de lá, como fiz no outono de 1942, aos dez anos de idade.
“Não me lembro de adentrar a floresta, mas me lembro do momento em que fiquei diante de uma árvore carregada de maçãs vermelhas. Fiquei tão atônito que recuei alguns passos. Mais do que a minha consciência, meu corpo parece se lembrar desses passos para trás. Sempre que faço um movimento errado, ou inesperadamente tropeço para trás, vejo a árvore com as maçãs vermelhas. Fazia dois dias desde que algum alimento passara pelos meus lábios, e ali estava uma árvore cheia de maçãs. Eu poderia estender a minha mão e pegá-las, mas apenas fiquei parado, em maravilhamento, e quanto mais fiquei assim, mais fundo o silêncio se enraizava em mim.
“Finalmente, eu me sentei e comi uma pequena maçã que estava no chão e meio podre. Depois de comê-la, devo ter caído no sono. Quando acordei, o céu já tinha escurecido. Eu não sabia o que fazer, então fiquei de joelhos. Esta posição, também, sobre os meus joelhos, eu sinto até hoje. Sempre que me ajoelho, lembro do pôr-do-sol que brilhava através das árvores e me sinto feliz.
(…)
“Minha mãe foi assassinada no começo da guerra. Não a vi morrer, mas escutei um único grito seu. Sua morte está bem aqui dentro, mas uma parte maior de mim que a sua morte é o seu reaparecimento depois dela. A qualquer momento em que estou feliz ou triste, vejo seu rosto. Ou ela está debruçada no parapeito da janela, ou parada na entrada da nossa casa, como se estivesse prestes a vir na minha direção. Agora estou trinta anos mais velho do que ela era ao morrer. O tempo não lhe somou anos. Ela está sempre jovem e fresca.”
(…)
“Na floresta, ninguém morre de fome. Ali estava uma moita de mirtilos, e, junto ao tronco de uma árvore, uma plantação de morangos. Encontrei até uma pereira. Não fosse pelo frio noturno, dormiria mais. Àquela altura, eu ainda não tinha uma noção clara da morte. Já vira muita gente morta no gueto e no campo, e sabia que um morto não se levanta e eventualmente é colocado numa cova. Mesmo assim, ainda não compreendia a morte como um fim. Eu continuava esperando que meus pais viessem me buscar. Essa expectativa, essa espera tensa, continuou comigo através da guerra, e voltaria para me dominar sempre que o desespero enfiasse suas garras em mim.”

Aharon Appelfeld, na autobiografia Sipur Hayim.
Traduzi a partir da versão em inglês, The story of a life (Schoken Books, 2004 – tradução de Aloma Halter). O livro é inédito no Brasil. Leia outro trecho aqui.