“Quando a Segunda Guerra Mundial estourou, eu tinha sete anos. A linha do tempo se tornou confusa — não mais verão e inverno, não mais longas visitas aos meus avós no interior. Nossa vida estava agora entulhada num quarto estreito. Por algum tempo estivemos no gueto, e ao fim do outono fomos atirados para fora de lá. Por semanas estivemos na estrada, e então, eventualmente, no campo, do qual dei um jeito de escapar.
“Durante a guerra, eu não era eu mesmo, mas algo como uma criaturinha que tinha uma toca, ou, mais precisamente, algumas tocas. Pensamentos e sentimentos eram consideravelmente constritos. Na verdade, às vezes me inundava uma dolorosa sensação de estupor sobre por que eu fora deixado só. Mas essas reflexões se desvaneceriam com as brumas da floresta, e o animal em mim retornaria e me envolveria em sua pelugem. Dos anos da guerra eu me lembro pouco, como se não fossem seis anos consecutivos. É verdade que, às vezes, imagens vem à tona da névoa pesada: uma figura sombria, uma mão carbonizada, um sapato do qual nada resta além de farrapos. Tais imagens, às vezes tão ferozes quanto a explosão de uma fornalha, desvanecem rapidamente, como se recusassem a se revelar, e de novo há o mesmo túnel escuro a que chamamos guerra. Este é o limite da memória consciente. Mas as palmas das mãos de alguém, as solas dos pés, as costas e os joelhos relembram mais do que a memória. Soubesse eu como extrair deles, teria sido esmagado com o que vi. Em certas ocasiões, consegui ouvir o meu corpo, e então escrevi uns poucos capítulos, mas até mesmo eles eram apenas fragmentos da escuridade pulsante que sempre estará trancada dentro de mim.”
Aharon Appelfeld, no prefácio da autobiografia Sipur Hayim.
Traduzi a partir da versão em inglês, The story of a life (Schoken Books, 2004 – tradução de Aloma Halter). O livro é inédito no Brasil. LEIA OUTRO TRECHO AQUI.
A tela que ilustra o post é Aharon, 1984, de Anselm Kiefer.