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Excerto do meu romancemprogresso.

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Pai e filho permaneceram ali por mais um tempo. Mais notícias de conhecidos, o refrão separando cada uma das estrofes da conversa. Então, Lázaro perguntou se ele não queria dar uma volta pelo terreiro. Encheram e levaram os copos consigo. Ziguezaguearam por entre as árvores, olhando ao redor, para baixo, o chão, a terra úmida, quando entrevista nas falhas do tapete de folhas e frutos apodrecidos, machucados. Logo seria noite. Desceram à meia-luz até o córrego. Era o mesmo e não era, claro. Alguns metros dele cobertos por uma densa vegetação, as árvores debruçadas sobre a margem e parte da água formando uma espécie de cabana ou tenda. Cristiano costumava se esconder ali quando criança; deitado na areia, cochilava ao som da água corrente a um braço de distância. Era uma faixa de areia escura de uns dois metros por três, se tanto, escondida do mundo. Quando chovia muito, ficava submersa, os galhos das árvores mergulhados no córrego, como se tivessem perdido alguma coisa e procurassem ali dentro.
Quando voltaram à cozinha, Cristiano perguntou por Marta. — Foi à cidade — respondeu Lázaro. — Mas já deve estar voltando. Quer tomar um banho? Descansar um pouco? Seu quarto continua no mesmo lugar. A gente trocou o guarda-roupa, as cortinas, os criados, mas a cama é a mesma.
— E por que não trocaram a cama, também?
— Parecia inteira. Achei melhor não trocar.
Cristiano atravessou a casa, sala de TV, corredor, outra sala, saiu pela porta da frente e caminhou até o carro. Quase noite agora. Pegou a mala que deixara no banco traseiro, depois olhou ao redor e respirou fundo. O céu estava escuro logo acima de sua cabeça e avermelhado no horizonte, um vermelho-escuro, meio sujo. Imaginou uma divindade pagã atraindo o sol para detrás das montanhas e o degolando lentamente, com uma lâmina cega. O muro de adobe que margeava um pedaço da propriedade também não existia mais. A história é que fora erguido pelos escravos. Mesmo quando era criança, ele se lembrava, restava apenas um pedaço, a alguns metros daquela mangueira, passando por onde agora estava a garagem e dali até o começo do terreiro. Ele se sentava no muro e lia gibis. Era um muro baixo e carrancudo, que originalmente circundava o casarão, o primeiro, derrubado pelo avô tão logo adquirira as terras, mais de meio século antes. Não gostava da localização da casa e optara por construir outra, abaixo da mangueira em vez de ao lado, num terreno um pouco mais plano. Por algum motivo, quando da construção, deixara intacta parte do muro. A nova casa era aquela em que Cristiano crescera. E que Lázaro reformara e, havia pouco, os dois sentados à mesa da cozinha, dissera ser dele também. Não sentia que fosse, embora não duvidasse da sinceridade do pai. O que faria se assumisse a fazenda? Talvez desfizesse o que o pai e o avô fizeram, colocasse abaixo a nova casa e reconstruísse a original, ou construísse outra mais ou menos por ali. Quanto ao muro, entretanto, não haveria nada que pudesse fazer. O muro erguido pelos negros, havia dois séculos ou mais. Erguido e depois derrubado, como se não fosse importante, ou como se devesse ser esquecido. Apenas um muro velho e inútil. Seus restos. Os restos de um muro circundando uma casa que não estava mais lá, que já não existia, que fora derrubada. Um cadáver estendido ao redor de um fantasma. Cristiano balançou a cabeça, sorrindo com tristeza. Colocar abaixo, erguer. Reformar. Coisas desfeitas e feitas e refeitas para ocupar o tempo ao mesmo tempo em que o sinaliza. Olhou uma última vez na direção do horizonte. Em seguida, fechou a porta do carro e voltou para dentro da casa.