Monstros folgados

Martin Amis n’“Os bastidores” (tradução: José Rubens Siqueira. Cia. das Letras):

“Já houve um subgênero de romances longos, sem enredo, digressivos e ensaísticos (razoavelmente) conhecidos com indulgência como ‘monstros folgados’. ‘O legado de Humboldt’, com extensos comentários sobre assuntos como teosofia e angelologia, é um clássico monstro folgado; e, quando foi publicado em 1975 (antes do Nobel de Bellow), passou oito meses na lista dos mais vendidos. Quarenta anos depois, o público de tal livro diminuiu, eu diria, em oitenta ou noventa por cento. Os leitores não estão mais nesse lugar, a paciência, a boa vontade, o entusiasmo autodidata não estão mais presentes. Por interesse próprio, gosto de pensar que esse subgênero mantém uma pulsação viável; mas, de modo geral, o monstro folgado está morto.”

Eu diria comercialmente morto, mas não morto, pois os monstros folgados circulam por aí, à disposição de seus (sim, poucos, cada vez mais raros) leitores. Sei porque frequento os mesmos ambientes que eles. Prefiro a companhia de um monstro folgado, erradão, descompensado e tagarela, a qualquer uma dessas criaturinhas bem apessoadas e educadinhas que autopsiam (“desconstroem”?) o próprio umbigo e vendem cera de ouvido como se fosse ouro.

Acho que um dos melhores exemplos recentes de monstro folgado é “La scuola cattolica”, de Edoardo Albinati. Li a versão em inglês, “The catholic school”, ed. Farrar, Straus and Giroux, trad.: Antony Shugaar. O livro é um misto de reconstituição histórica (do “Massacre de Circeo, em 1975, quando três rapazes de “boas famílias” raptaram, torturaram e estupraram duas mulheres, matando uma delas), romance de (de)formação e ensaio memorialístico. A escola do título é a San Leone Magno, em Roma. Os três criminosos eram ex-alunos. Machismo, licenciosidade, hipocrisia religiosa e fascismo: o espírito da República de Salò não morreu (ciao, Giorgia).

“O grande”, de Juan José Saer, o melhor romance latino-americano deste primeiro quarto de século XXI, é um monstro tão folgado, mas tão folgado que não se permitiu terminar e matou seu autor. “Outro lugar” e “O outono dos ipês-rosas”, de Luis S. Krausz, são belos monstros folgados brasileiros. “Aniquilar”, de Michel Houellebecq, é um monstro folgado que se esforça para aceitar a morte (e a morte de várias outras coisas, como, por exemplo, da democracia ocidental — estamos quase lá, falta bem pouco) (não caia na conversa fiada de que o livro é “esperançoso”).

Também aprecio os monstros irascíveis, como “The combinations”, de Louis Armand, “Zettels traum”, de Arno Schmidt, e “Boa tarde às coisas aqui em baixo”, de António Lobo Antunes. Um monstro irascível é um monstro folgado dado a furiosas experimentações, um monstro folgado kinky e desvairado, um monstro folgado que fugiu do rehab, um monstro folgado que usa roupas de couro e invade residências carregando uma maleta cheia de brinquedinhos, aqueles olhos vermelhos brilhando no escuro, esperando você acordar.

Não raro, os monstros irascíveis têm mais de mil páginas. Se for curto, não é irascível. E cada página é escrita como se fosse a última página do mundo, como se não houvesse a página seguinte, como se as páginas seguintes e as páginas anteriores estivessem em chamas, como se o próprio mundo estivesse em chamas (eu sei, eu sei, eu sei).

Há autores que escrevem os dois tipos de monstros, como Ernesto Sábato: “Sobre heróis e tumbas” é um monstro folgado; “Abadon, o exterminador” é um monstro irascível.

Os monstros irascíveis também continuam a circular por aí, exigindo mais cuidado e atenção do que as pessoas em geral estão dispostas a oferecer. Os monstros irascíveis exigem leitores muito abertos e pacientes, contradição que só acrescenta mais graça à brincadeira. Sim, trata-se de uma relação abusiva e desigual. É aquele negócio das primeiras páginas de “The tunnel”: Gass dizia que elas são propositalmente difíceis para afastar os idiotas. Certo, ele não usou esse termo, Gass era um sujeito elegante, um professor, um verdadeiro scholar, mas disse algo nesse sentido, sim. A questão é: para continuar ali, você tem que fazer por onde, você tem que merecer. As melhores coisas na vida são assim, dos bons casamentos aos bons inferninhos¹.

Monstros folgados e monstros irascíveis trazem boas recompensas. Eles são, em si e por si, promessas de enriquecimento. Não é porque o mundo empobreceu que precisamos andar por aí com os fundilhos rasgados, uns trocados no bolso e a cabeça cheia de estrume. Até porque todas essas coisas, de um jeito ou de outro, morrerão conosco. Aproveite o dia, porra. Aproveite os olhos. Usufrua da maldita massa cinzenta enquanto o Alzheimer não se instala.

Em tempo: “Os bastidores” é um puta monstro folgado. E o melhor livro a aparecer por aqui em 2024, de longe (resenha AQUI). Espero que a Cia. também lance “Experience”. E novas traduções de “Grana” e “Campos de Londres” viriam bem a calhar.

¹ Ainda existem inferninhos?