Devolvendo a espingarda para Hemingway

Conto originalmente publicado na São Paulo Review em 09.11.2015.

1.

O que é que eu posso dizer? Gosto de atirar nos pombos. Eu gosto, e pronto. A minha mulher acha um horror, fica toda histérica quando me vê pegando a espingarda, escancarando a janela ou ajeitando a escada para subir no telhado, os desgraçados gostam de se reunir lá em cima e arrulhar e empestear a porra toda. São uns bichos nojentos, e poucas coisas me fazem tão bem quanto mirar no mais gordo da turminha e engatilhar e atirar. Quando acerto em cheio – e, modéstia à parte, eu acerto em cheio em noventa e nove por cento das vezes –, o desgraçadinho explode numa festa de sangue e penas, e eu me sinto verdadeiramente realizado. E daí que a patroa está lá embaixo berrando, me chamando disso e daquilo, dizendo que os vizinhos vão reclamar, Ketchum é uma cidade pequena e não sei mais o quê? Tem coisas que as mulheres não entendem. E quais são essas coisas? Bem, pela minha experiência, são justamente as coisas mais importantes. Ela que se foda. Pombos são bichos nojentos. E eu gosto de atirar neles.

2.

Fui pescar outro dia com um conhecido nosso, um sujeito enorme que já viajou pelo mundo inteiro e agora, tenho que dizer, parece meio acabado. Minha mulher diz que é escritor. Ele não me diz porra nenhuma sobre isso, graças a Deus. A gente fala de outros assuntos ou só fica lá, calado e bebendo, o que, aliás, é a melhor coisa que um homem crescido pode fazer: calar a boca e encher a cara. A casa dele tem uma vista muito bonita, dela você vê o vale com o rio Wood, e eu gosto de ir pra lá, a gente se senta ali fora, quando não está muito frio, conversa um pouco e bebe um monte e fica contemplando a paisagem. É sempre bom. Volto pra casa relaxado. O velho Ernest anda meio acabado, como eu disse, mas sempre me tratou bem, e a mulher dele, Mary, parece gostar quando eu apareço, como se eu ajudasse a distrair o sujeito do que quer que esteja incomodando aquela cabeçorra branca dele. Outro dia eu falei pra minha mulher, vai que é ela que está incomodando o desgraçado, e ri, mas a infeliz não achou muita graça. O que eu fiz? Peguei a espingarda e fui atirar nuns pombos. Acertei dois em cheio sem fazer muito esforço, eles são uns animais meio burros. Depois, bebi mais um pouco e resolvi tirar um cochilo. A vida não está fácil, vocês sabem. Quando acordei, a mulher tinha detonado a minha espingarda com uma marreta. Só não matei a filha-da-puta porque uma vizinha veio acudir. Contei tudo isso pro Ernest quando a gente foi pescar, ele soltou um grunhido e falou que ia me emprestar uma espingarda, desde que eu não usasse o troço pra matar a minha mulher. Ele consegue ser engraçado, às vezes. E eu aceitei a oferta, é claro, dizendo que ia usar só por umas duas semanas; quando a minha mulher recebesse, ia pegar a grana com ela e comprar uma espingarda nova (ela não gostou da ideia, mas acho que me ver com a porra da marreta na mão, bem, acho que isso convenceu a cretina a me ressarcir, sabe como é).

3.

Os dias passaram rápido, e fiquei bem surpreso porque eu não tive de lembrar a fulana de me dar o dinheiro. Comprei uma Stoeger de cano duplo e fui devolver a do Ernest. Ele estava sentado na cozinha, metido num roupão, e acho que devia estar bebendo desde cedo. Coloquei a arma em cima da mesa e falei, comprei uma nova hoje, vim devolver a sua. O desgraçado me encarou de um jeito esquisito. Que foi?, perguntei. Ele balançou a cabeça e agradeceu, disse, você veio em boa hora, vou mesmo precisar dela. Ué, eu falei, se tava precisando, era só ligar, eu te devolvia no ato. Não, ele encolheu os ombros, nada assim urgente. Eu me sentei ali com ele e a gente passou o resto da tarde enchendo a cara. Teve um momento em que ele olhou pra espingarda e depois pra mim, e os olhos dele se encheram de lágrimas. Cê tá bem?, perguntei. E ele me disse uma coisa bem estranha: você veio aqui pra me matar. Eu comecei a rir, como assim, porra?, mas ele insistiu nessa história por um tempo, e depois pediu desculpas, disse que andava meio paranoico. Minha mulher tinha falado alguma coisa sobre ele ter sido hospitalizado uns meses antes, mas eu achava que era por causa da bebida. Caralho, até eu precisei dar um tempo na enfermaria certa vez. Depois, ele disse que ia fazer um piquenique no dia seguinte, ele e Mary, e eu falei que era uma boa, piqueniques ajudam a relaxar. Quando fui embora, já estava escuro, e a última coisa de que lembro é do velho Ernest metido naquele roupão espalhafatoso, sentado na cozinha, os dois braços sobre a mesa, as mãos ao redor do copo, olhando pra espingarda largada ali em cima como se esperasse ouvir alguma coisa dela, algum segredo, alguma novidade, qualquer coisa, mas os dois canos da desgraçada continuavam mudos feito Deus.