Artigo publicado em 16.02.2021 n’O Popular.
Outro dia escrevi alhures que a grande literatura policial não é nada sem os espaços geográficos em que se desenrola, os quais sempre aparecem ligados de modo inextricável aos espaços morais. É impossível pensar em James Ellroy ou Paula L. Woods sem Los Angeles, Donna Leon sem Veneza, Dennis Lehane sem Boston, Ian Rankin sem Edimburgo, Edyr Augusto sem Belém do Pará, Sara Paretsky sem Chicago, George Pelecanos sem Washington e Garcia-Roza sem Copacabana e o bairro Peixoto, no Rio. Pela sua própria natureza, em que se combinam extroversão e introversão, fraturas expostas e hemorragias internas, todo romance policial é também a história de um palmilhar atento por ruas e avenidas, ermos e multidões, silêncios e confissões, becos e vielas, almas e consciências, cortiços e mansões, fronteiras e interiores.
E não há gênero literário que apresente de forma mais direta as transformações sofridas por essa ou aquela localidade no decorrer do tempo. As peculiaridades de cada lugar são expostas pelos crimes que ocorrem e pelas maneiras como os envolvidos lidam com eles. Não me refiro à mecânica mais geral da coisa (mata-se por dinheiro, vingança ou loucura), mas às especificidades — nos melhores livros, as peças e os encaixes daquela mecânica são tão particulares quanto as receitas culinárias.
Tenho pensado nessas coisas por duas razões. A primeira é que assino o posfácio da nova edição de Calibre 22, penúltimo livro de Rubem Fonseca. O livro deve chegar às livrarias ainda em 2021, por obra e graça da Nova Fronteira (a editora vem relançando desde o ano passado, com um projeto gráfico porreta, a obra completa de Zé Rubem, morto no ano passado). E a segunda razão é que, após mais de uma década lidando com outros meios e projetos, Marçal Aquino lançará um novo romance, Baixo Esplendor, em abril. Que “o mais cruel dos meses” traga algo tão bom é o tipo de coisa que só acontece no Brasil, lugar onde todos os meses são cruéis, ainda mais nesses tempos dilaceradores que vivemos.
Se o gigante Zé Rubem dispensa apresentações, Aquino é um autor que merece bem mais atenção da nossa parte. Não se trata, é claro, de um escritor obscuro como eu, até porque várias de suas narrativas foram muito bem adaptadas para o cinema, a maioria pelo cineasta Beto Brant: Os Matadores (baseado em conto que pode ser lido na coletânea Famílias Terrivelmente Felizes), O Invasor e Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios; há também Ação Entre Amigos, mas, salvo engano, o roteiro desse é original. O ator Marco Ricca estreou na direção com uma bela adaptação de Cabeça a Prêmio, meu livro predileto do sujeito.
Dada a importância dos espaços geográficos a que aludi nos primeiros parágrafos, note-se que a “zona” devassada por Aquino é, muitas vezes, a fronteiriça. Pensando por esse lado, é curioso como a atmosfera de “terra de ninguém” vem se espalhando pelo Brasil. É como se o nosso país se tornasse, inteiro, uma região fronteiriça, conflagrada, “aberta” no mais amplo sentido Velho Oeste do termo. Isso, para mim, só reafirma a relevância das narrativas de Aquino para a compreensão de um estado de coisas — criminoso e armado até os dentes — que se torna cada vez mais generalizado.