Um passeio pelas Estações Havana, de Leonardo Padura.
Ensaio publicado no Cândido.
1.
Antes, durante e após os crimes, os cadáveres, os interrogatórios, a fumaça dos cigarros, as ressacas etílicas e morais, as diligências, antes, durante e após tudo isso, estão a cidade e seus arredores. A grande literatura policial não é nada sem os espaços geográficos em que se desenrola, os quais sempre aparecem ligados de modo inextricável aos espaços morais, por assim dizer. Para citar apenas autores contemporâneos (ou a lista seria interminável), é impossível pensar em James Ellroy ou Paula L. Woods sem Los Angeles, Donna Leon sem Veneza, Dennis Lehane sem Boston, Ian Rankin sem Edimburgo, Edyr Augusto sem Belém do Pará, Sara Paretsky sem Chicago, George Pelecanos sem Washington e Leonardo Padura sem Havana. Parece-me óbvio que, pela sua própria natureza, em que se combinam extroversão e introversão, fraturas expostas e hemorragias internas, todo romance policial é também a história de um palmilhar atento por ruas e avenidas, silêncios e confissões, becos e vielas, almas e consciências, cortiços e mansões.
Por essas e outras, nesse tipo de narrativa, é fantástico acompanhar como a história de cada local se desenrola, ano após ano, década após década (nas séries mais longevas), junto com as histórias dos personagens. Não há gênero literário que apresente de forma mais direta as transformações sofridas por essa ou aquela localidade com o passar do tempo. As peculiaridades de cada lugar são expostas pelos crimes que ocorrem e pelas maneiras como os envolvidos lidam com eles. Não me refiro à mecânica mais geral da coisa (mata-se por dinheiro, vingança ou loucura), mas às especificidades — nos melhores livros, as peças e os encaixes daquela mecânica são tão particulares quanto as receitas das culinárias locais.
Chegamos, assim, à Havana de Leonardo Padura (1955). Não se trata de uma Havana qualquer, mas daquela situada em 1989, ano tormentoso no qual assistimos à queda do famigerado muro berlinense. Embora a ditadura cubana se mantenha até hoje, a União Soviética caiu de podre já no começo da década de 1990. Claro que esses desdobramentos geopolíticos não interessam aos quatro romances que compõem as Estações Havana (lançados no Brasil pela Boitempo), até porque o último deles termina em outubro, um mês antes da implosão da Cortina de Ferro. O tenente Mario Conde, protagonista das histórias, escritor frustrado e policial talentoso (o que só o deixa ainda mais frustrado), sempre tem coisas mais imediatas com as quais se preocupar: os crimes que investiga e o passado que ao mesmo tempo o sustenta e devora — pois, como diz seu melhor amigo, o Magro que não é mais magro, o Conde gosta de lembrar, é “um lembrador do cacete”.
2.
O primeiro volume da tetralogia é Passado Perfeito (tradução: Paulina Wacht e Ari Roitman) e se desenrola no inverno, quando o tenente é arrancado de sua folga de ano-novo para investigar o sumiço de um figurão do Ministério da Indústria. Para complicar, o burocrata desaparecido é um ex-colega dos tempos de escola, um arrivista casado com Tamara, antiga paixão de Conde (“De quantas coisas terei de me lembrar”, ele se pergunta, aflito).
No primaveril Ventos de Quaresma (tradução: Rosa Freira D’Aguiar), o assassinato brutal de uma professora arroja Conde mais uma vez em seu passado imperfeito — a vítima lecionava no mesmo colégio onde ele estudou. “Olhe, meu amigo”, diz o Magro a certa altura (pág. 114), “você não pode passar a vida vivendo de nostalgia. A nostalgia nos ilude: traz de volta apenas o que a gente quer lembrar, e isso às vezes é muito saudável, mas quase sempre é moeda falsa.” Aqui, para variar, a corrupção da memória ecoa a corrupção do ambiente.
No verão de Máscaras (tradução: Rosa Freira D’Aguiar), o cadáver de um rapaz travestido conduz Conde a uma Havana em que a repressão à homossexualidade e aos artistas que “desobedecem” à ditadura são lados de uma mesmíssima moeda. O melhor personagem desse volume é Alberto Marqués, dramaturgo caído em desgraça e “transviado ideológico” que nos lembra: “esta ilha tem a missão histórica de estar sempre recomeçando (…), e o esquecimento costuma ser o bálsamo para todas as feridas que permanecem abertas” (pág. 99). Soa familiar?
Por fim, em Paisagem de Outono (tradução: Ivone Benedetti), temos o assassinato de um ex-funcionário do governo cubano, um “desertor” que teve a péssima ideia de retornar à ilha para resgatar um bem valioso — não o passado, mas um objeto roubado nos tempos em que trabalhava para o governo, expropriando os bens dos “inimigos da revolução”; o passado só está ali para matá-lo e castrá-lo, nessa ordem e literalmente.
3.
Há pouco, falei sobre a natureza extrovertida das narrativas policiais. Claro que isso diz respeito aos aspectos mais superficiais, àquele ostensivo palmilhar pelas ruas, pois a introversão de um personagem como Conde (“A gente não precisa passar a porra da vida pensando, refletiu”) também se faz muito presente e não contradiz em nada o andamento material, concreto, da coisa. Pelo contrário, é justamente por ser tão autoconsciente que ele é um investigador talentoso e um escritor (quase) sempre frustrado. Para um escritor, “pensar demais” nos primeiros estágios de um projeto pode ser o beijo da morte, aquilo que trava o impulso inicial (depois, sim, é preciso pensar e repensar tudo, à exaustão); para um investigador, o mesmo hábito é imprescindível para desvelar, sob “a alma mais limpa da cidade”, suas “histórias sórdidas e lacerantes”.
Em um certo sentido, os quatro romances dão conta de uma lenta e dolorosa transformação na alma desse personagem, muito ligada à alma de Havana: “No final somos parecidos, a cidade que me escolheu e eu, o escolhido: morremos um pouco, todo dia, de morte longa e prematura, feita de pequenas feridas, dores que crescem, tumores que progridem… E, embora eu queira me rebelar, esta cidade me mantém agarrado pela gola e me domina, com seus derradeiros mistérios” (Ventos, pág. 124). Conde precisa morrer como policial, ou matar o policial que há em si, para ter alguma chance de renascer como escritor, consciente de que o sucesso de tal renascimento não é garantido. O mais provável é que se frustre uma vez mais. “Você é um homem surpreendente”, diz Marqués (em Máscaras, pág. 192-3) após ler um de seus contos. “Tanto que acho que é um falso policial. É como um outro tipo de travestimento, não é?”
Em um país no qual “ninguém se perde, e no entanto se perde qualquer coisa” (Passado, pág. 109), o protagonista procura dar um jeito de reencontrar aquela fome criadora e de se manter fiel a ela e, por decorrência, a si mesmo. Enquanto isso, enquanto ele se esforça, os cadáveres, mentiras, desaparecimentos e corrupções se amontoam ao redor, tornando a rotina policial cada vez mais insuportável. Uma eventual caça às bruxas acaba por, previsivelmente, asfixiar e mesmo amputar membros importantes e, não raro, inocentes da Central de Polícia, como o major Rangel, a figura paterna que não se cansa de perguntar por que Conde entrou para a polícia, afinal (embora não consiga se virar sem o protegido).
Rangel e outros personagens fazem e repetem essa pergunta não porque Conde seja um mau policial. A questão é outra, e tem a ver com o preço que ele paga por ser tão bom no que faz. Nas palavras do major: “é melhor sair da polícia antes que você não tenha mais jeito. Ou vai terminar sendo um cínico, um insensível ou um sujeito ruim, para quem tanto faz ver um morto ou tomar um refresco” (Paisagem, pág. 212). Daí a “sujidade opressiva do desassossego” e a necessidade de arrancá-la, e o principal motivo pelo qual Conde precisa matar o policial dentro de si para, enfim, ser ou tentar ser outra coisa (no mesmo Paisagem, pág. 204):
A certeza de ter assistido ao desmoronamento definitivo de várias vidas lhe pusera diante dos olhos a mais cabal evidência do motivo pelo qual tinha sido incapaz de escrever (…): suas verdadeiras experiências costumavam andar por outros lugares, muito longe da beleza, e ele entendeu que deveria antes vomitar suas frustrações e seus ódios para depois ser capaz — se fosse (…) — de engendrar alguma coisa bela.
4.
Conde parece oscilar entre ser um “falso policial” e um “pseudoescritor”, mas, em seus melhores momentos, ao solucionar os mistérios criminais e lidar bem com os da ficção, é um policial e um escritor. Claro que, aqui e ali, a depender do humor e da ressaca, ele rejeita uma coisa ou outra, ou ambas, mas elas estão sempre inscritas nele, para o bem ou para o mal. Dessa forma, a responsabilidade para com o trabalho policial (para com o outro) e o apreço pela literatura não se anulam nem se esvaem.
Há essa oscilação e essa ambiguidade, e elas são intrínsecas e extrínsecas a ele. Observe, por exemplo, as maneiras como a cidade é vista por Conde e outros personagens. Em um certo momento, Havana é referida como “algo mágico”, de “um espírito poético invencível”, uma cidade com “alma”, “e não são muitas as cidades do mundo que podem se vangloriar de ter a alma assim, à flor da pele” (Máscaras, pág. 122). Em outra passagem, é um lugar destinado a “uma morte violenta”, uma cidade “forjada pela prolongada agonia do esquecimento” e que “morreria castrada, nova Atlântida afundada no mar por um pecado imperdoável” (Paisagem, pág. 44).
O espaço geográfico e o espaço moral, nas Estações Havana e em qualquer obra literária que se preze, sempre estabelecem diálogos afiados, por mais que haja momentos em que os ruídos atingem níveis insuportáveis. Diante da iminência de um furacão, Conde sente uma “estranha afinidade” pelo “sacana”, a quem exorta que venha logo. Ele se dispõe a solucionar mais um caso enquanto a devastação não chega; é o passo necessário para que, depois, sozinho na “madrugada ciclônica”, consiga experimentar alguma sensação de paz.