Depois do fogo

Conto publicado n’O Popular em 15.09.2020.

 

Ele se sentou à frente do examinador e olhou ao redor. Um escritório comum: estantes vazias, ventilador girando no teto, cortinas encardidas, pilhas de processos sobre a mesa. O examinador falava ao telefone, ou melhor, concordava ao telefone, sim, sim, sim. Pouco depois, ligação encerrada, o examinador olhou para ele. Não disse nada por quase um minuto. Haviam lhe avisado que costumavam fazer isso. “Você senta lá”, disseram, “e os caras ficam te testando, eles te testam o tempo inteiro, a entrevista inteira é um teste, ai de você se não passar.” “O que acontece?”, ele quis saber. Ninguém respondeu. E ninguém respondeu porque não se sabia ao certo, exceto que os reprovados desapareciam, não voltavam para o assentamento, não voltavam para as províncias de origem, não eram mais vistos. Assim, ele estava nervoso. Queria impressionar o examinador, mas não sabia como. Queria mostrar que tinha algo a oferecer, mas não sabia o quê. Por fim, o examinador mordeu a tampa da caneta, bufou e disse: “Você matou seu vizinho”. “Sim”, respondeu ele, “mas o vizinho era matável, não fiz nada de errado.” O examinador sorriu: “Eu não disse que você fez nada de errado”. Houve um novo silêncio, mais denso do que o primeiro. “Veio andando para a Cidade?” “Sim. Minha esposa e minha filha morreram. Os silos da minha região fecharam. Não havia o que comer, nem o que fazer. Eu resolvi tentar a sorte.” “De que morreram sua esposa e sua filha?” “Raiva.” “E você não foi infectado?” “Não, senhor, eu… eu me cuidei.” “Como?” “Eu amarrei as duas até que… os Faxineiros passassem por lá.” “E então elas foram sacrificadas?” “Sim, senhor. De forma bastante higiênica e cuidadosa. Os Faxineiros sempre trabalham direito.” “Mas não houve um… imprevisto?” Ele pigarreou. Precisava tomar muito cuidado, sobretudo agora. “Bom, eu entendo que era, que… que foi necessário e…” “Incendiar a sua casa?” “Sim, senhor.” “Você não acha que bastaria sacrificar a sua esposa e a sua filha e depois, digamos, queimar os corpos no quintal ou em outro lugar?” “De jeito nenhum, senhor. Elas estavam doentes havia semanas. Creio que os Faxineiros fizeram a coisa certa. O senhor sabe, para evitar que a infecção se espalhasse. Não é uma raiva comum.” “Nesse caso, como não se trata de uma raiva comum, e não é mesmo, não teria sido o caso de lhe queimar junto com elas, junto com a casa?” Ele sentiu o ar da sala desaparecer. Sentiu um calor súbito, como se o cômodo estivesse em chamas, como se a mera sugestão do examinador bastasse para remetê-lo de volta à casa, para arremetê-lo no fogo. O que poderia responder? Não estava doente, claro que não. Fora testado em todos os checkpoints. Caso houvesse a menor suspeita de infecção, teria sido sacrificado a quilômetros do assentamento, muito longe da Cidade. “Estou saudável, senhor, cem por cento”, sorriu, mostrando os três dentes que ainda restavam na boca. “E o que você quer?” “Trabalho, senhor.” “Que espécie de trabalho?” “Qualquer trabalho.” “Qualquer trabalho?” “Qualquer trabalho, senhor.” O examinador sorriu, anotando alguma coisa na ficha antes de dispensá-lo. Ele saiu dali direto para as minas. Lá, foi recebido por um capataz cego. “Tem mãos fortes?” “Tenho, sim”, ele mentiu antes de ser engolido pela escuridão.