Na edição de hoje do Correio Braziliense, a jornalista Nahima Maciel assina uma matéria sobre romancistas e ensaístas contemporâneos que têm se aventurado na literatura infanto-juvenil. Estou por ali com Daniel está viajando. Leia a matéria clicando AQUI, AQUI ou na imagem ao final do post.
Para escrever a matéria, Nahima me entrevistou dias atrás. Claro que, por motivos de espaço, ela não teve como publicar as minhas respostas na íntegra. Aqui estão elas:
O que te levou a escrever para crianças? É diferente de escrever para adultos?
R: Não foi algo planejado. No meio de outro projeto, anos atrás, eu me senti atraído por esse tipo de narrativa e decidi experimentar, ver se era capaz de desenvolver algo para crianças. Na prática, em termos de planejamento e execução, não foi diferente de escrever para adultos. Eu procurei atentar para o vocabulário e evitei certo espiralamento cronológico que sempre exploro em meus romances. Em outras palavras, procurei manter a narrativa linear e o mais direta possível.
Daniel está viajando é teu primeiro livro infantil? Pode contar como ele surgiu? E como está conectado com tua obra para adultos, especialmente com Terra de casas vazias?
R: Sim, é o meu primeiro livro infantil. Em 2012, eu estava terminando de escrever um romance chamado Terra de casas vazias (lançado em 2013 pela Rocco). Esse livro me tomou bastante tempo (comecei a concebê-lo em 2009), e eu senti que precisava me concentrar em outra coisa por um tempo, a fim de recarregar as energias e terminá-lo. Terra de casas vazias é formado por vários blocos narrativos, e um deles é protagonizado por uma criança. Eu gostei de trabalhar com esse universo, por assim dizer, e decidi desenvolver uma pequena narrativa autônoma. Fiz isso entre uma revisão e outra do romance, e acho que deu certo. Gosto de pensar que Daniel está viajando, em grande parte graças às estupendas ilustrações de Lina Nestorova, tem algo a dizer às crianças, é capaz de estabelecer um diálogo muito proveitoso com elas.
O que não pode faltar em um livro para crianças?
R: Imaginação. Há que se buscar formas menos óbvias de abordar a realidade e a própria narrativa. Em Daniel está viajando, ao falar sobre morte, procurei brincar com as coisas que os adultos dizem para as crianças, como: “Fulano foi para o céu”. E se o protagonista imaginasse isso — “ir para o céu” — acontecendo de fato, isto é, literalmente? Creio que essa imagem é uma maneira de presentificar a ausência, e também um meio de acessar a mente infantil ao lidar com situações traumáticas. Ao escrever o livro, eu me lembrei de mim mesmo aos seis, sete, oito anos, lidando com essa coisa misteriosa que é a vida, ouvindo o que os adultos me diziam e, sem compreendê-los muito bem, deixando a imaginação correr solta. A imaginação é uma defesa que temos contra o mundo. Não me refiro à fuga da realidade, mas à busca incessante por significados, imagens e formulações que nos ajudem a viver e abraçar o mundo, por mais espinhoso que ele seja.
Perda é um dos temas do livro. Como, na tua opinião, a literatura deve apresentar a morte para as crianças? Que papel a literatura pode ter na descoberta da mortalidade?
R: Acho que a literatura deve apresentar a morte (e outros temas difíceis) da forma mais direta possível para as crianças. Não se deve subestimar a inteligência das crianças, sufocar sua curiosidade, ignorar sua vivência e desprezar sua imaginação. Jamais. Isso talvez seja visto com estranhamento por alguns, a julgar pela maneira como certas obras literárias têm sido recebidas por aí. O livro Enfim, Capivaras, de Luisa Geisler, foi banido de um evento literário em Nova Hartz-RS, por exemplo, por retratar de forma crível um bando de adolescentes. O “linguajar” da obra seria “inadequado”, como se adolescentes não falassem palavrões. Isso é absolutamente ridículo. Nosso país vive uma epidemia de desinteligência, da qual só sairá se investirmos em educação e cultura. A maioria dos jovens e adultos é incapaz de raciocinar ou mesmo de interpretar textos simples. Não por acaso, são esses mesmos indivíduos que andam por aí espalhando o ódio e a cizânia. Há uma relação direta entre a falta de educação (em todos os sentidos) e o caos político-social, de colorações autoritárias, que vivemos. A desinteligência e a falta de imaginação são formas de escravidão. Hoje, independentemente do espectro ideológico e da classe social, a maioria dos brasileiros vive na escravidão. As pessoas estão no fundo daquela caverna da alegoria platônica, atirando pedras nas sombras projetadas na parede, atirando pedras umas nas outras, aparentemente satisfeitas com esse espetáculo grotesco.
Como você se sente escrevendo para crianças em país cujo PISA constata que mais da metade dos estudantes de 15 anos, incluindo aí os da elite, não sabem ler nem escrever? Por que você acha que chegamos nisso?
R: Não acho que isso seja por acaso. Leitura é algo fundamental para o desenvolvimento do senso crítico, para que se tenha uma noção mínima de si mesmo, do outro e do lugar histórico que ocupamos. Penso que a máquina pública brasileira sempre mirou o oposto disso, mesmo quando os investimentos em educação eram maiores, mas extremamente desorganizados e mal administrados. Ao estado brasileiro, interessa formar essa multidão de zumbis iletrados, os quais estão muito bem representados à direita e à esquerda — no Brasil, não me canso de dizer, a estupidez é ambidestra. Deseducadas, as pessoas passam a se fiar em bizarrices neointegralistas como Bolsonaro ou populistas como Lula, viram terraplanistas, liberais de calças curtas, socialistas de boteco, fascistinhas de condomínio, apegam-se ao desconhecimento, à incultura, ao obscurantismo e aos piores preconceitos. Como eu me sinto escrevendo para crianças e adultos em tal contexto? Prefiro nem pensar muito a respeito, mas apenas me concentrar no meu trabalho e tentar realizá-lo da melhor forma possível. Se eu pensasse demais, creio que seria dominado pelo desânimo e pelo desespero. Por menor que seja a minha relevância, não posso me dar ao luxo de parar. É preciso seguir em frente, é preciso seguir lendo, escrevendo, pensando, dialogando, criando e, acima de tudo, vivendo.
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