Texto publicado hoje n’O Popular.
Em 1992, o bósnio Aleksandar Hemon viajava a passeio pelos Estados Unidos quando a Guerra dos Balcãs estourou. Voltar para casa era loucura, ou mesmo impossível. Nascido em 1964, em Sarajevo, ele já era um escritor promissor em seu país natal, o qual logo seria fragmentado e devastado por aquele que é o pior confronto militar a ocorrer em território europeu desde a Segunda Guerra Mundial. Vivendo desde então nos EUA, Hemon adotou a língua inglesa e foi adotado pela cidade de Chicago, firmando-se como um autor inventivo, que trafega com desenvoltura pela ficção (O Projeto Lazarus, Amor e Obstáculos) e pela não ficção (O Livro das Minhas Vidas), explorando temas que conhece muito bem, como a memória e o desterro.
O romance Como Eu Escrevi as Guerras Zumbi (traduzido à perfeição pela escritora Maira Parula e lançado, a exemplo dos outros livros do autor, pela Rocco) não é bem sobre zumbis, embora um personagem diga a certa altura que a “beleza da vida é que um dia todo mundo se transforma em zumbi, depois morre”. O livro é, antes, uma comédia cujo protagonista, Joshua, tenta escrever o roteiro de um filme com zumbis. Enquanto isso, sua vida, que já não era lá grande coisa, degringola lindamente.
Vivendo em Chicago no começo da década passada, à sombra dos atentados de 11/09 e nos estrondos iniciais da desastrosa invasão do Iraque, Joshua dá aulas de inglês para imigrantes do Leste Europeu, lida (mal) com situações familiares bem complicadas (a irmã está se divorciando, o pai adoece) e, sendo o que é – meio babaca –, toma uma série de decisões erradas que colocarão em risco a única coisa em sua existência que parece caminhar bem (o namoro com uma psicóloga). Com sua prosa bem-humorada, repleta de sacadas que sempre pegam o leitor no contrapé (“Se Deus não existe, quem puxa a ponta do próximo Kleenex?”; “O que seria do amor sem a segurança do esquecimento recíproco?”; “Por que estamos lutando se não posso ter meu Bordeaux?”), Hemon mergulha o protagonista em uma jornada que não chega a ser redentora – quem precisa disso? –, mas da qual decorre algum amadurecimento.
Aliás, um dos vários méritos do autor é transformar esse indivíduo cretino em um personagem quase cativante. As “ideias de roteiros” de Joshua, muitas engraçadíssimas, pipocam no decorrer da narrativa; seu desejo de contar histórias é palpável, assim como o campo minado afetivo que ele próprio vai armando. Circulando entre pessoas machucadas pela guerra e pelo exílio, Joshua age de forma inconsequente, mas – ao menos isso pode ser dito em seu favor – não se esquiva quando a conta chega.
E é nesse ponto que o romance cresce: quando as circunstâncias reúnem Joshua e outro náufrago da existência, por assim dizer. Alguns desdobramentos são violentos e todos são bastante dolorosos, e é irônico que algum reordenamento só se instaure por meio de uma inversão estrutural, como se a reunião familiar, ao final, não passasse de mais um trecho das Guerras Zumbi que Joshua tenta escrever. Lidando com refugiados de verdade, ele se torna uma espécie de refugiado interior, condição talvez necessária para que enfim amadureça. “É só que eu não posso voltar ao que era antes”, ele diz a um conhecido. E ouve: “Ninguém pode. Bem-vindo ao mundo”.