Begbie

Artigo publicado hoje n’O Popular.

Begbie

Para quem viu Trainspotting, célebre filme de Danny Boyle lançado em 1996, e para quem leu o livro homônimo de Irvine Welsh, o nome Francis Begbie é aterradoramente familiar. Ele não é viciado em heroína como seus amigos Renton, Sick Boy, Spud e cia., mas em violência. É aquele sujeito incapaz de adentrar um bar sem provocar um escarcéu dos diabos em tempo recorde. Intempestivo, espanca qualquer um por qualquer motivo, real ou imaginário. Begbie já havia dado as caras na sequência de Trainspotting, Pornô, e na pré-sequência Skagboys (a obra-prima de Welsh, que resenhei AQUI; todos os livros saíram no Brasil pela Rocco), e agora retorna em O Artista da Faca (tradução: Ryta Vinagre).

Vale ressaltar que o novo romance está mais para um thriller que para os painéis edimburgueses pintados nos outros romances. E Begbie parece mudado: vivendo na Califórnia com a esposa norte-americana e duas filhas pequenas, trabalha como artista plástico após ter sido, de certo modo, resgatado do sistema prisional britânico e de sua vida criminosa pregressa. É um novo homem, certo? Mais ou menos.

Quando dois sujeitos ameaçam sua família, por exemplo, ele reincorpora a anima psicopática de outrora, piorada pelo fato de que se tornou menos explosivo e mais calculista. Similarmente, o assassinato de um de seus filhos em Edimburgo, para onde viajará a fim de enterrar o rapaz (e quem quer que esteja por trás de sua morte), explicitará o lado obscuro do “velho-novo” Begbie.

Sobre essa confluência de personalidades por obra e graça da violência, tomo a liberdade de transcrever um trecho (página 111): “Cada vez mais sua vida parece fraturada, como se o passado fosse vivido por outra pessoa. Não é só que o lugar onde ele agora mora e as pessoas que o cercam sejam diferentes, é como se ele próprio fosse alguém inteiramente diferente. As obsessões e deficiências predominantes do homem que ele foi no passado agora parecem completamente ridículas no morador atual de sua mente e corpo. A única ponte é a raiva; quando furioso, ele sente o gosto de seu antigo ser”.

O Artista da Faca é, reafirmo, menos ambicioso que Trainspotting e, sobretudo, Skagboys. O humor e a acidez de Welsh comparecem aqui e ali, sobretudo quando usados para ressaltar as contradições do protagonista e de suas escolhas. Há algo de irreparável em Begbie, tão mais perigoso agora que aprendeu a controlar seus impulsos, a planejar cada passo, a usar com maior inteligência aqueles que o cercam – incluindo familiares. Mas, ironicamente, é possível entrever alguma nobreza nesse “velho-novo” Begbie e em alguns de seus atos, no modo como se dedica à esposa e às filhas e na maneira como faz uma autocrítica relativamente à forma como (não) criou seus outros rebentos. “Quando o mocinho é o psicopata do nosso antigo bairro”, diz alguém a certa altura, “a cidade tem sérios problemas.”

Óbvio que as motivações do protagonista são egoístas e seus métodos, hediondos. Ele quer vingar o morto não porque o amasse, mas porque lhe é inadmissível aceitar passivamente o assassinato de um filho. E o desfecho, quando se revela quem é o assassino, diz muito do círculo de violência que começa e termina no próprio Begbie ou, pelo menos, insiste em passar por ele a todo instante. Quando tudo arde em chamas, só podemos culpar a nós mesmos.