Banville e a memória

Texto publicado hoje n’O Popular
(outra versão desse texto saiu no Estadão em meados de 2013).

Luz

A memória é uma dança de espelhos, e os reflexos que distinguimos aqui e ali raramente são confiáveis. O narrador e protagonista de Luz Antiga, Alexander Cleave, tem plena consciência disso. O romance de John Banville fecha uma trilogia cujos volumes precedentes são Eclipse Sudário, também lançados no Brasil pela Biblioteca Azul e traduzidos respectivamente por Celso Mauro Paciornik, Cássio Arantes Leite e Sergio Flaksman.

Em Luz Antiga, a ironia e a autoironia são as armas à disposição para dar conta da memória, descrita como uma senhora “dissimulada e sutil”. É muito fácil se perder nesse “labirinto cristalino” onde tempo e memória, “dupla nervosa de decoradores”, estão sempre “trocando a mobília de lugar, alterando a disposição e até a finalidade dos aposentos da casa”. Assim, o narrador coloca em dúvida a sua capacidade de resgatar o que quer que seja do “naufrágio gradual” que é a vida, ao mesmo tempo em que demonstra, pelo próprio desenrolar da narrativa, o quanto esse esforço é incontornável.

Cleave é um ator de teatro que abandonou os palcos após uma apresentação desastrosa, mas isso não chega a incomodá-lo. A dor maior diz respeito ao suicídio da filha, Cass. Uma década após a perda, ele é convidado a atuar num filme sobre um certo Axel Vander, um impostor que, por coincidência, estava por perto quando Cass se matou numa cidadezinha da Ligúria. Aqui se inscreve um dos pontos altos da autoironia de Banville: Vander protagoniza o romance anterior da trilogia, Sudário. Em Luz Antiga, o livro no qual se baseia o filme em que Cleave atua se intitula A invenção do passado e foi escrito por alguém referido como JB. Em alguns momentos, Banville faz com que seu narrador se refira a esse livro de forma mordaz, incorporando o tipo de coisa que os raros detratores dizem a seu próprio respeito: “Retórico ao extremo, de uma elaboração teatral, totalmente sintético, artificial e atravancado”.

Mas esse jogo não é o aspecto mais relevante do livro. Assim como Cleave não se fixa obsessivamente naquelas coincidências, e a narrativa não chega a constituir uma investigação relativa ao suicídio de Cass, Banville também está, digamos, preocupado com outras coisas.

O esforço de ambos, autor e narrador, é o de permitir que a memória assuma alguma forma, qualquer que seja, enquanto a vida se esboroa (ou a despeito desse esboroamento). Assim, mais importante do que quaisquer autorreferências, do que os percalços profissionais do narrador, do que Vander, é a maneira como Cleave recupera a história de seu primeiro amor: aos quinze anos, ele teve um envolvimento amoroso com a mãe de seu melhor amigo.

Nenhum outro evento tem, no romance, a potência desse affair com uma mulher vinte anos mais velha, nem mesmo os ecos da perda de Cass. Menos pelo seu suposto desfecho, anunciado desde o início, e mais por aquilo que, meio século depois, Cleave conseguirá resgatar e descobrir (o final guarda algumas surpresas), é que a extensão da memória se revela em toda a sua precariedade. Assim como o universo “contém uma massa perdida que não temos como ver nem medir”, também a memória resta em sua maior parte obscurecida, apesar da luz antiga que lançamos sobre ela ou que, inadvertidamente, ela deita sobre nós, vivos e mortos.