Resenha publicada em 18.05.2013 no Estadão.
O professor de filosofia e escritor Jérôme Ferrari teve de abocanhar o Goncourt — o mais importante prêmio literário francês — para ter um romance traduzido por aqui. O sermão sobre a queda de Roma foi laureado em 2012 e, mesmo antes da premiação, já era um sucesso de vendas na França. A despeito do título, que esclarecemos a seguir, não é um romance histórico.
Agostinho, então bispo de Hipona, proferiu vários sermões sobre a queda de Roma desde agosto de 410 d.C., quando os visigodos chefiados por Alarico invadiram e saquearam a cidade por três dias. Para não nos delongarmos muito, sublinhe-se que a pilhagem de Roma e o choque advindo disso fariam com que o futuro santo, no exercício de seus sermões, começasse a gestar aquela que seria a sua obra máxima — A Cidade de Deus.
A geração de Agostinho viveu um período traumático no qual o declínio romano se acentuava e as investidas bárbaras deixavam claro que a cidade, dita eterna, era tão perecível quanto qualquer outra. Assim, é interessante como, em sua narrativa contemporânea, Ferrari parece sugerir não que os invasores estejam chegando ou já se encontrem entre nós, mas que todos, de uma forma ou de outra, por força de uma inescapável inadequação, somos bárbaros.
Para ilustrar isso, ressaltamos dois personagens, cujas andanças sustentam boa parte do livro: Marcel e seu neto, Matthieu. O primeiro é alguém marcado pela ausência. Isto é evidente desde o começo, quando é descrita uma fotografia de família tirada no verão de 1918, na qual Marcel não está presente: o pai é um prisioneiro de guerra e ele ainda não foi concebido. Uma ausência dupla, portanto: do pai e do filho. Décadas depois, contudo, ao observar a fotografia, Marcel é o único que restou para servir como “anteparo de todos contra o nada”. Após uma experiência frustrante na Segunda Guerra Mundial, ele faz carreira como administrador colonial no norte da África, às vésperas da queda de outro império, o francês. Mas a ocorrência definidora de sua existência é a morte da esposa. Esta é a ausência última.
Matthieu, por sua vez, abandona os estudos de filosofia em Paris e, com um amigo de infância, Libero, retorna ao vilarejo da Córsega de onde provém a família para gerenciar um bar. O único a compreender sua decisão é Marcel. No fim das contas, a fuga de um espelha a do outro, empreendida muito antes, e ambos, conscientemente ou não, reconhecem a derrota e dão “um consentimento dolorido, total, desesperado, à estupidez do mundo”.
Se pensarmos na França contemporânea, assolada por choques culturais e crise econômica, o contraponto com a decadência romana não é despropositado. A diferença é que o “lento labor de demolição” parece antes entranhado nos personagens do livro, e não fora deles. Ferrari não vocifera contra a civilização ocidental ou lhe anuncia o término, mas nos insere em um movimento maior, humano e por isso bárbaro, cuja beleza está além de qualquer ideal civilizatório irrealizável.
Algo acontece perto do desfecho, uma violência tão gratuita quanto anunciada, para que ele encerre esse romance estupendo com a hipótese segundo a qual os “mundos passam, em verdade, um depois do outro, das trevas às trevas, e sua sucessão talvez não signifique nada”. Afinal, a exemplo dos familiares de Marcel naquela foto, e conforme as palavras de Agostinho, tudo o que construímos, construímos sobre a areia e tende a se esfarelar.