Em que consiste a fantasmagoria de Trama Fantasma? Ou talvez o filme de Paul Thomas Anderson tenha a ver com o caráter não propriamente fantasmagórico, mas fantasmático do processo melancólico, conforme assinalado por Sigmund Freud em Luto e Melancolia e revisitado por Giorgio Agamben em Os Fantasmas de Eros (capítulo 5 do volume Estâncias). Eu me refiro ao sujeito que “se esquiva da realidade e se apega ao objeto perdido” graças ao que o psicanalista chama de “psicose alucinatória do desejo”. Há uma perda, negada pelo eu, o qual não é capaz de suportá-la. É por aí que, por exemplo, penso as duas “mortes” de Reynolds Woodcock (Daniel Day-Lewis) e também as relações dele com a mãe morta (sem aspas), com as duas mulheres que lhe são próximas, e com o trabalho ou, melhor dizendo, sua arte.
E é por aí que penso no esforço, intrínseco ao personagem e também ao filme (cujo formalismo de ecos kubrickianos é paradoxalmente evidente — pela mise-en-scène — e elusivo — pelos efeitos, pela sutileza com que são velados e desvelados seus motivos, pelas entrelinhas do texto, pela porosidade dos olhares), de apreender o inapreensível, de se referir a uma coleção de objetos perdidos ou em vias, sempre em vias, de se perderem ou serem perdidos, deixados pelo caminho.
De certo modo, Trama Fantasma é uma espécie de elegia do esfarelamento, seja ele orgânico (o cadáver da mãe; as roupas que, belíssimas, apodrecerão cedo ou tarde; os gestos que se perdem no vazio representado ou presentificado pelo outro), seja afetivo (o amor que ameaça implodir antes mesmo de se constituir enquanto tal).
Antes, eu me referi às “mortes” de Woodcock. O jogo, ali, consiste em lançar o outro no abismo, mas com uma rede de segurança algumas dezenas de metros abaixo. Quem empurra é Alma (Vicky Krieps), modelo, ajudante, amante, enfermeira, esposa, cozinheira etc. Woodcock, cujas criações mantém um ateliê de alta-costura na Londres dos anos 1950, é um ser vampiresco, atormentado pela perda da mãe, alicerçado pela irmã, Cyrill (Leslie Manville), e carente de algo que sequer consegue nomear. Em sua luta contra o dia, contra os ruídos do dia, contra a sujeira e a finitude do dia, há ou parece haver (citando Agamben) “uma vaga ideia do que só pode ser possuído se estiver perdido para sempre”.
Noutro paradoxo, sua aproximação de Alma é a reiteração de uma série de distanciamentos pregressos, cíclicos ou mesmo ciclotímicos. Mesmo depois que se dá conta disso, ou justamente porque se dá conta disso, a estratégia de Alma é no sentido não de obliterar ou “superar” esse ciclo, mas, ironicamente, de alimentá-lo, manipulá-lo, torná-lo favorável a si e, por conseguinte (estou falando de amor), ao próprio Woodcock. O entendimento do outro pressupõe não quaisquer mudanças, mas (o que também é irônico) justamente um adensamento de seus caracteres viciosos, por assim dizer. O amor como phármakon.
O aceno da perda e da ausência é o que sustém, ainda que provisoriamente, a presença de um e de outro (e de um para o outro) personagens. Cada um deles assume a postura fantasmagórica que lhes é exigida, compreendendo, não sem uma grande parcela de desolação, que seu lugar não é exatamente ao lado, mas à sombra do outro. É um desenho impossível, claro. Na topografia acidentada desse jardim de objetos perdidos, marcada por um comércio ambivalente de lutos vivenciados, pressentidos e/ou anunciados, cada personagem trafega por uma rotina rígida, de trabalho e dedicação impressionantes, porque sabe que o resultado final (mas também ele provisório) é a beleza.
Envenenado, Woodcock alucina com a mãe morta e, de certo modo, alucina também com a irmã e a companheira vivas. Ele margeia a morte, costurando aos poucos e com precisão maníaca um tecido que, mal ou bem, separe este mundo daquele. Suas “mortes” são iluminações na medida em que redirecionam seu olhar, seu trabalho e, portanto, seus afetos para uma possibilidade (Alma) menos etérea, mais carnal. Quando enfim compreende (nomeia?) isso, ele se deixa envenenar com prazer.
As demandas do corpo, não só as propriamente sexuais e/ou sensuais, embora ainda fisiológicas (vide a cena com ele e Alma no banheiro, perto do final), inscrevem um sentido outro que não a pura fantasmagoria melancólica, por mais importante que esta seja para o temperamento do artista. É como se, a partir dali, ele tivesse carne com a qual preencher suas criações, e uma carnalidade não apenas reativa ou residual, mas ativa, objetificada porque objetificadora, e portanto capaz de ensejar aquela estratégia que leva ao co-pertencimento, à partilha objetal consciente (outro paradoxo?) e, assim, consensual. Sim, estou falando de amor.
Não custa lembrar que luto (e/ou melancolia) e criação artística são, é claro, costurados com a mesmíssima agulha de Eros. Assim, o movimento empreendido por Trama Fantasma exige que também vejamos e revisitemos tudo pelos olhos (voltados para dentro) de Woodcock: a imagem de Alma, seu duplo fantasmático que ele eventualmente abraça ou, melhor dizendo, engole (e é por ela engolido), aos poucos se fixa e permite a ele, usando as palavras de Freud, gozar desse fantasma “sem escrúpulo nem vergonha”. Ora, no âmbito desse comércio afetivo e dentro dos resultados possíveis, isso é o que há de mais palatável e sexualmente saudável. Woodcock e Alma (e Cyrill, claro) aplainam aquela topografia acidentada e se reconciliam não propriamente consigo mesmos, mas com as ramificações das sombras alheias, as quais ainda recaem sobre certas partes de seus corpos e, mal ou bem, resguardam algum mistério.