Gifford

Traduzi os dois primeiros capítulos de Wild at Heart: The Story of Sailor and Lula, de Barry Gifford, primeiro romance de uma série de sete reunidos AQUI. David Lynch adaptou o livro em 1990 e faturou a Palma de Ouro em Cannes com o longa. Ele e Gifford voltaram a trabalhar juntos no estupendo Lost Highway. Gosto demais do estilo rascante de Gifford, e acho uma pena que permaneça praticamente inédito no Brasil. Que isso mude, e logo.

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“Você precisa de um homem que vá pro inferno com você.”
– Tuesday Weld.

……

PAPO DE GAROTA

Lula e sua amiga Beany Thorn sentadas a uma mesa do Raindrop Club bebendo rum com Coca enquanto veem e ouvem uma banda branquela de blues chamada The Bleach Boys. O grupo passou suavemente de “Dust my Brown”, de Elmore James, para “Me and the Devil”, de Robert Johnson, e Beany soltou uma bufada.
“Não suporto esse vocalista”, ela disse.
“Não é tão ruim”, disse Lula. “Segura o tom.”
“Não por isso, é que ele é feio demais. Caras barbudos e com barriga de cerveja não são bem o meu tipo.”
Lula deu uma risada. “Olhando pra você assim magrela feito um pedaço de fio dental usado e mal lavado, não sei como pode criticar.”
“É, bom, se ele disser que toda aquela flacidez vira um pau à meia-noite, ele é um mentiroso.”
Lula e Beany gargalharam e tomaram um pouco das bebidas.
“Então o Sailor está saindo logo, ouvi dizer”, disse Beany. “Você vai ver ele?”
Lula concordou com a cabeça e triturou um cubo de gelo com seus dentes de trás e o mastigou.
“Vou encontrar com ele no portão”, ela disse.
“Não odeio os homens tanto assim”, disse Beany. “Eu me sentiria melhor te desejando boa sorte.”
“Nem todo marido é perfeito”, disse Lula. “E Elmo provavelmente não teria engravidado a segunda se você não tivesse dado o pé na bunda dele.”
Beany torceu sua franja loira em um nó na testa.
“Eu devia era ter metido um trinta e oito na virilha dele, era isso que eu devia ter feito.”
Os Bleach Boys começaram uma espécie de mambo pantanoso do Professor Longhair e Beany puxou uma garçonete.
“Traz mais dois runs duplos com Coca, ok?”, ela disse. “Que diabo, Lula, olha só o rebolado da piranha.”
“Você quer dizer da garçonete?”
“Uhum. Aposto que se eu tivesse um rabo igual ao dela o Elmo não ia meter o pau em tudo que é buraco desse lado do Tangipahoa.”
“Difícil ter certeza”, disse Lula.
Os olhos de Beany lacrimejaram. “Eu acho”, ela disse. “Eu largaria um monte de coisas – talvez até o Valium – só pra ter um pouco de bunda, sabe?”

…..

CORAÇÃO SELVAGEM

Sailor e Lula estão na cama do hotel em Cape Fear ouvindo o ventilador de teto ranger. Pela janela eles poderiam ver o rio entrar no Atlântico e observar os barcos de pesca navegar pelo canal estreito. Era fim de junho, mas havia um vento suave que os mantinha “não desconfortáveis”, como Lula gostava de dizer.
A mãe de Lula, Marietta Pace Fortune, proibira a filha de ver Sailor Ripley outra vez, mas Lula não tinha a intenção de seguir essa ordem. Até porque, Lula raciocinou, Sailor tinha pago sua dívida com a sociedade, se é que se tratava mesmo disso. Ela não conseguia entender como ir para a cadeia por ter matado alguém que tentava matá-lo podia ser considerado pagamento de uma dívida com a sociedade.
A sociedade, sendo como era, pensou Lula, por certo não tinha piorado com a eliminação de Bobby Ray Lemon. Na cabeça dela, Sailor tinha realizado um serviço benéfico tanto no curto quanto no longo prazo para a humanidade, e devia ter recebido alguma bela recompensa em vez de dois anos no campo de trabalho Pee Dee River por homicídio em segundo grau. Algo como uma viagem-com-tudo-pago para Sailor com a companhia que escolhesse – Lula, é claro – para Nova Orleans ou Hilton Head por umas duas semanas. Um hotel de primeira e um carro alugado, como um estiloso Chrysler LeBaron conversível e novo em folha. Isso, sim, faria sentido. Em vez disso, o pobre Sailor teve que varrer e limpar os lados da estrada, esquivar das cobras e comer fritura ruim por dois anos. Porque Sailor foi mais ligeiro que aquele cretino do Bobby Ray Lemon ele foi punido por isso. O mundo é bem selvagem no coração e ainda por cima esquisito, pensou Lula. De qualquer forma, Sailor estava livre agora e ainda beijava como ninguém que ela tivesse conhecido na vida, e o que a sra. Marietta Pace Fortune não ficasse sabendo não teria como machucá-la, não é?
“Por falar em ficar sabendo”, Lula disse para Sailor. “Eu te escrevi contando sobre isso de encontrar as cartas do meu avô no escritório do sótão?”
Sailor se sentou apoiado nos cotovelos. “A gente estava falando de alguma coisa?”, ele disse. “E não.”
Lula estalou a língua duas vezes. “Achava que sim, mas já me enganei antes. Às vezes eu faço isso. Eu penso em alguma coisa e depois acho que comentei em voz alta com alguém.”
“Eu realmente senti falta da sua cabeça quando estava lá na Pee Dee, querida”, disse Sailor. “Do resto de você também, é claro. Mas o jeito como a sua cabeça trabalha é um mistério que Deus guardou só pra Ele. Agora, você falou de umas cartas?”
Lula se sentou e colocou um travesseiro apoiando as costas. Seus longos cabelos pretos, os quais ela costuma usar amarrados atrás e meio enrolados feito a cauda de um cavalo de raça, espalhava-se atrás dela sobre a fronha azul-clara do travesseiro como as asas de um corvo. Seus grandes olhos cinzentos fascinavam Sailor. Quando estava trabalhando na estrada, ele pensava nos olhos de Lula, nadava neles como se fossem uns lagos enormes de água verde com pequenas ilhas violetas no meio. Eles o mantiveram são.
“Sempre pensei no meu avô. Sobre por que motivo a minha mãe nunca quis falar sobre o papai dela. Tudo o que eu sabia é que ele estava morando com a mãe dele quando morreu.”
“Meu pai estava morando com a mãe dele quando morreu”, disse Sailor. “Sabia disso?”
Lula balançou a cabeça. “Não sabia mesmo”, ela disse. “Quais eram as circunstâncias?”
“Ele estava quebrado, pra variar”, disse Sailor. “Minha mãe então já tinha morrido do câncer no pulmão.”
“Que marca ela fumava?”
“Camels. Igual a mim.”
Lula rolou seus grandes olhos cinzentos. “Minha mãe fuma Marlboro agora”, ela disse. “Antes ela fumava Kools. Eu roubava dela quando comecei a fumar ali pela sexta série. Quando fiquei velha o bastante pra comprar, comprei esses. Agora estou acostumada com Mores, como você deve ter percebido. São maiores.”
“Meu pai estava procurando trabalho e foi atropelado por um caminhão de cascalho na rodovia Dixie Guano, perto da Setenta e Quatro”, disse Sailor. “A polícia disse que ele estava bêbado – meu pai, não o motorista do caminhão –, mas eu imaginei que eles só queriam enterrar o caso. Eu tinha catorze anos na época.”
“Jesus, Sailor. Sinto muito, meu bem. Eu não fazia ideia.”
“Tudo bem. Eu quase nunca via ele mesmo. Nunca tive muita orientação paterna. O cara da defensoria pública ficou dizendo isso na minha audiência de condicional.”
“Bom, de qualquer forma”, disse Lula, “o papai da minha mãe desfalcou algum dinheiro do banco onde trabalhava. E foi pego. Fez isso pra ajudar o irmão tuberculoso dele, que estava um trapo e não conseguia trabalhar. Vovô pegou quatro anos de cadeia em Statesville e o irmão dele morreu. Ele escrevia pra vovó quase todo dia, dizendo o quanto amava ela. Mas ela se divorciou enquanto ele estava em cana e nunca mais falou a respeito dele pra ninguém. Ela se recusava até mesmo a dizer o nome dele. Mas guardou todas as cartas! Dá pra acreditar nisso? Eu li cada uma delas, e te digo que aquele homem amou aquela mulher. Deve ter ficado destroçado quando ela se recusou a ficar junto dele. Uma vez que uma mulher da família Pace decide uma coisa, não tem discussão.”
Sailor acendeu um Camel e passou para Lula. Ela pegou, tragou com força, soprou a fumaça e girou os olhos outra vez.
“Eu ficava do seu lado, Sailor”, disse ela. “Se você fosse um ladrão.”
“Diabo, docinho”, Sailor disse, “você ficou comigo depois que eu enterrei Bob Ray Lemon. Um homem não pode pedir muito mais que isso.”
Lula puxou Sailor para cima dela e lhe deu um beijo suave na boca. “Você mexe comigo, Sailor, mexe mesmo”, ela disse. “Chega lá no fundo.”
Sailor puxou o lençol, expondo os seios de Lula. “Você é perfeita pra mim, também”, ele disse.
“Você me lembra o meu pai, sabia?”, disse Lula. “Mamãe me contou que ele gostava de mulheres magras cujos peitos são um pouquinho grandes pros corpos delas. Ele também tinha um nariz grande. Eu já te contei como foi que ele morreu?”
“Não, docinho, não que eu me lembre.”
“Ele foi envenenado com chumbo quando lixou a pintura velha da nossa casa sem usar uma máscara. Mamãe disse que o cérebro dele derreteu. Começou a esquecer das coisas, sabe? Ficou violento de verdade. Até que no meio de uma noite ele se banhou com querosene e acendeu um fósforo. Quase incendiou a casa comigo e a mamãe dormindo no andar de cima. A gente saiu bem a tempo. Foi um ano antes de eu te conhecer.”
Sailor pegou o cigarro da mão de Lula e colocou no cinzeiro perto da cama. Ele colocou as mãos em seus ombros, pequenos e delicadamente musculosos, e os esfregou.
“Como foi que você arranjou uns ombros tão bons?”, Sailor perguntou.
“Nadando, acho”, disse Lula. “Mesmo quando era criança eu adorava nadar.”
Sailor puxou Lula e a beijou na garganta.
“Você tem um pescoço tão lindo e longo, parece um cisne”, ele disse.
“Vovô Pace tinha um pescoço branco, longo e macio”, disse Lula. “Parecia uma estátua de tão branco. Eu gosto demais do sol pra ficar branca daquele jeito.”
Sailor e Lula fizeram amor, e depois, enquanto Sailor dormia, Lula ficou na janela e fumou um dos Camels de Sailor enquanto fitava o rio Cape Fear. Era meio assustador, ela pensou, estar bem no final de um curso d’água. Lula olhou para Sailor estendido de costas na cama. Era estranho que um rapaz como Sailor não tivesse nenhuma tatuagem, ela pensou. Caras como ele costumavam ter um monte. Sailor soltou um ronco e se virou de lado, expondo as costas longas e estreitas e a bunda achatada para Lula. Ela deu mais uma tragada e jogou o cigarro pela janela, no rio.