Resenha publicada no Estadão em 25.10.2016.
Aos poucos, a crise política, econômica e identitária que o Brasil atravessa começa a se ver refletida na produção literária contemporânea. Não é uma tarefa fácil. Ainda estamos no olho do furacão, e qualquer um sabe o quão fácil é resvalar num tom panfletário ou, pior, lamuriento, em que a perplexidade cega e/ou os vícios ideológicos impossibilitam qualquer rede compreensiva que se procure lançar sobre a nossa realidade. Em A Tradutora, Cristovão Tezza evita todas essas armadilhas – e outras tantas – com uma narrativa inventiva e muito bem costurada.
A personagem-título se chama Beatriz, a mesma que já marcara presença no romance Um Erro Emocional e em alguns contos do autor. Ela acabou de passar por um rompimento amoroso, livrando-se de um relacionamento abusivo com outro velho conhecido nosso, o escritor Donetti, está enfronhada na tradução de um livro do agressivo (e fictício) filósofo espanhol Felip T. Xaveste, encomendada por um editor de São Paulo (com quem almoça a certa altura no Figueira Rubaiyat), e, paralelamente, trabalha por três dias como guia e tradutora de um alemão, executivo da FIFA, em visita a Curitiba meses antes da Copa do Mundo de 2014.
Tezza consegue alternar todos esses planos narrativos sem tropeços, criando quase que uma simultaneidade de eventos e suas consequências psicológicas, brincando com a cronologia e as vozes dos personagens (sempre do ponto de vista de Beatriz) e, ao mesmo tempo, traçando um desenho acurado do Brasil nesta segunda década do século 21.
Observe-se que o momento no qual se passa o romance, com a Copa do Mundo e as malfadadas eleições presidenciais de 2014 à frente e as manifestações de junho de 2013 ainda bem nítidas no retrovisor, oferece um posto privilegiado de observação: a desilusão relativa às “jornadas” já ganhava forma, assim como a crise e a irascibilidade generalizadas dos anos seguintes.
Também é interessante notar como a posição ocupada pela protagonista oferece uma visão dos vários tons e camadas de corrupção inscritos em nosso DNA. Beatriz é uma tradutora e literata, alguém que almeja escrever livros infantis, mas que não hesita em se colocar a serviço de escroques – e até mesmo se relacionar sexualmente com um deles – quando surge a oportunidade. Por esse viés, e também pelo que ouvimos dos outros personagens, o escritor Donetti, o editor paulista, é bem fácil perceber a subserviência pragmática e, no limite, a pusilanimidade do intelectual brasileiro, exploradas com sutileza e bom humor ao longo do romance.
O executivo alemão tem um papel importante nesse jogo de espelhos. Ele sempre parece ter algo que escapa a Beatriz e, por decorrência, ao leitor, mesmo quando age e fala de forma frívola, como um turista deslumbrado. Mas é a partir dos contrastes com esse forasteiro e também com a voz estrangeira do filósofo Xaveste, que volta e meia invade o texto, que Beatriz alcança alguma perspectiva, ainda que fugidia, de sua condição e A Tradutora se coloca com maior firmeza.
Cristovão Tezza não oferece respostas, e este nem seria o seu trabalho, mas estabelece um solo no qual, com o devido cuidado, talvez algum dia possamos semear um questionamento honesto acerca de nós mesmos, dos modos como nos relacionamos e do país em que vivemos.