Soube há pouco que a escritora Elvira Vigna faleceu. Tinha sessenta e nove anos de idade. Era uma das vozes mais instigantes da literatura brasileira contemporânea. Em abril de 2010, escrevi sobre seu romance Nada a Dizer para o Jornal do Brasil. Republico abaixo a resenha. Que Elvira descanse em paz.
No romance Nada a dizer, de Elvira Vigna, temos a narrativa obsessivamente detalhada de um adultério. Surpreende que a voz que conta essa história em todos os seus mínimos detalhes seja não a de um dos amantes, mas, sim, a voz da mulher traída.
Com pouco mais de 60 anos, ela reconstitui cada passo do companheiro, Paulo, em sua malfadada aventura extraconjugal, bem como vários eventos anteriores e posteriores. A descrição cuidadosa, com toques masoquistas, de algo tão doloroso acaba se revelando um esforço da narradora no sentido de reconhecer ou, pior, vir a finalmente conhecer o seu companheiro, entender quem ele de fato é e como ele veio a se tornar quem se tornou.
Mais do que isso: ao não reconhecer ou desconhecer alguém com quem vivia há tanto tempo, a narradora também deixa de reconhecer ou passa a desconhecer a si própria: “Eu não esperava que isso fosse possível. Que eu pudesse não existir, que a minha existência pudesse não ser contabilizada pela pessoa que mais me conhecia no mundo”. Assim, além de administrar a dor pela traição, ela também se vê inteiramente esvaziada de sua identidade. Tudo aquilo que era ou julgava ser como que escorre pelos dedos de suas mãos.
Para além da crise conjugal, há uma espécie de mapeamento do que significa esse episódio para a narradora em função do que ela pensou e viveu desde a juventude, nos anos 60. Nas palavras dela: “Fomos nós, os que fizemos 60 anos no início do século 21, os que lutaram e enfrentaram hostilidades de todo tipo para que pudéssemos viver, todos, do jeito que quiséssemos (…)”.
Ao relembrar o percurso de sua relação com Paulo, ela chama a atenção para as mudanças ocorridas não só em seu relacionamento, mas no mundo. Há 40 anos, eles defendiam o ideário esquerdista e lutavam pela liberdade e pelos “direitos do proletariado”. Panfletavam, acolhiam fugitivos da ditadura, enfrentavam o calamitoso estado de coisas vigente no Brasil.
Não muito tempo depois, com o fim da repressão, ela vê o companheiro empregar-se em uma grande companhia e colocar em dúvida opiniões que eles sempre tiveram e “sobre as quais não havia como ter dúvidas”. No discurso, eles renegavam esses “papéis predeterminados”, toda a suposta imbecilidade pequeno-burguesa ou coisa que o valha.
Na prática, e aqui está a ironia, o leitor vê como eles, sobretudo Paulo, acabam se encaixando justamente nos papéis predeterminados. Vemos o descompasso cada vez maior entre o discurso e as expectativas de outrora e os rumos que suas vidas e o mundo tomaram e continuam a tomar.
A narradora, contudo, não sugere que a decadência de seu relacionamento se deva, de uma forma ou de outra, seja direta ou indiretamente, à falência de todo aquele ideário. Não se trata disso. O que ela faz é conferir tridimensionalidade a esses personagens e às suas motivações por meio de uma contextualização histórica e também pelo registro dessas mudanças bastante significativas, de quem eles foram um dia e de quem eles se tornaram, tanto um para outro quanto em relação ao mundo.
Assim, os acontecimentos narrados ganham maior ressonância e Nada a dizer, longe de se tornar um exemplo de prosa confessional monocórdia e autoindulgente, exibe toda a riqueza de um ponto de vista consciente de si, do outro e do que os cerca.